domingo, 29 de março de 2009

Na noite terrível

Na noite terrível, substância natural de todas as noites,
Na noite de insônia, substância natural de todas as minhas noites,
Relembro, velando em modorra incômoda,
Relembro o que fiz e o que podia ter feito na vida.
Relembro, e uma angústia
Espalha-se por mim todo como um frio do corpo ou um medo.
O irreparável do meu passado - esse é que é o cadáver!
Todos os outros cadáveres pode ser que sejam ilusão.
Todos os mortos pode ser que sejam vivos noutra parte.
Todos os meus próprios momentos passsados pode ser que existam algures,
Na ilusão do espaço e do tempo,
Na falsidade do decorrer.

Mas o que eu não fui, o que eu não fiz, o que nem sequer sonhei;
O que só agora vejo que deveria ter feito,
O que só agora claramente vejo que deveria ter sido -
Isso é que é morto para além de todos os Deuses,
Isso - e foi afinal o melhor de mim - é que nem os Deuses fazem viver...

Se em certa altura
Tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita;
Se em certo momento
Tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim;
Se em certa conversa
Tivesse dito as frases que só agora, no meio-sono, elaboro -
Se tudo isso tivesse sido assim,
Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro
Seria insensivelmente levado a ser outro também.

Mas não virei para o lado irreparavelmente perdido,
Não virei nem pensei em virar, e só agora o percebo;
Mas não disse não ou não disse sim, e só agora vejo o que não disse;
Mas as frases que faltou dizer nesse momento surgem-me todas,
Claras, inevitáveis, naturais,
A conversa fechada concludentemente,
A matéria toda resolvida...
Mas só agora o que nunca foi, nem será para trás, me dói.

O que falhei deveras não tem 'sperança nenhuma
Em sistema metafísico nenhum.
Pode ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei,
Mas poderei levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar?
Esses sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.
Enterro-o no meu coração para sempre, para todo o tempo, para todos os universos,
Nesta noite em que não durmo, e o sossego me cerca
Como uma verdade de que não partilho,
E lá fora o luar, com a esperança que não tenho, é invisível p'ra mim.

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa

quarta-feira, 18 de março de 2009

Fé.


Quando as crianças se juntavam à minha volta em roda e me pressionavam até eu chorar, eu Te desejava.
Quando eu queria ter forças para nascer, eu Te desejava.
Quando eu me obrigava a ser forte para enfrentar o mundo, eu Te desejava.
Quando diante de mim faltavam com a verdade, eu Te desejava.
Quando diante de mim faltavam com a coragem, eu Te desejava.
Quando eu era humilhada publicamente Tu vinhas me vingar
E na medida em que as minhas lágrimas escorriam Tu engolias em seco e sentias meus nós na garganta como se fossem Teus.
Te desejava ainda nas noites em que amarrava com cadarços meus piercings nos mamilos
E nas noites em que me masturbava enquanto dormiam do meu lado os namorados.

E como quiseste eu vim pequena, cabelos escuros, pele clara, nariz afilado, mãos e pés pequenos, olhos grandes, quadris largos e seios de uma menina de doze anos.
E pus aos Teus pés, de quatro, os gemidos mais sinceros.
Adorei com o coração o amor e as dores que me deste
E para juntar os meus cacos fui até o inferno.

Eu nunca Te desenhei nem nunca dei forma ao Teu corpo.
Eu nunca Te imaginei chegando num cavalo branco ou me carregando até o altar.
Eu só queria um homem capaz de me dizer a verdade
Mesmo que a verdade fosse me cuspir na cara.

Tu vieste a pé, com uma camisa do Sex Pistols. Troxeste o coração negro como o meu
E inadvertidamente aquele riso de menino que eu desejava a cada esquina.

Quando eu tentava preencher o Teu buraco na alma com amor, eu Te desejava.
Quando eu permanecia impassível do Teu lado nas maiores loucuras, eu Te desejava.
Quando eu chorava no Teu leito de morte, eu Te desejava.
E quando por dentro eu clamava aos céus para Te trazer de volta, eu Te desejava.