sábado, 24 de janeiro de 2009

Vou-me embora para Pasárgada...



Mas levo comigo minha memória mais bonita: um menino lindo sentado em frente ao ventilador; sorrindo; suado.


Deixo aqui, nas mãos de um Homem, aquilo que presta, pulsa e dói.


Me acalmo, me desespero

(Cazuza)

O amor deflagra guerras
No coração de quem ama
Um bandido sórdido
Uma menina linda

O amor lança seu ferrão
No desamparo dos amantes
É um inseto louco em volta da luz
Um lobo solitário uivando na escuridão

Do amor pouco sei
E quase tudo espero
Amando eu me acalmo e me desespero

O amor faz da minha voz
Um gemido surdo
De mim um escravo lanhado
Um tigre encurralado

O amor sombreia as trevas
Clareia até cegar
É um lar que não abriga
O crime perfeito de dois assassinos

"O amor é o nosso estado natural quando não optamos pela dor, pelo medo ou pela culpa."
( Willis Harman e Howard Rheingold )

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Homenagem a um amor ao alcance dos dedos.




Analgésico. Meu amor. Meu anjo. Minha força fictícia.
Eu te ofereço o meu amor incondicional porque já te conheço há mais de dois minutos: tens sido companheiro fiel nos últimos anos e conheço e aceito teus reveses.

Que os homens me ouçam e corram para os laboratórios de pesquisa.

Eu tenho um corpo que não me obedece. Que tem compulsão por cair. Eu ordeno: anda! Ele desfalece. Ele se arrasta e é tão fraco que não reage. Ele adoece sem nem ao menos produzir febre, se entrega, e a cada ano que passa envelhece com os olhos cheios d'água, esperando esbarrar num outro corpo nos descaminhos do acaso.

Analgésicos: por que não fizeram um para a alma?
O que fazem os cientistas que não disputam esse nicho com as igrejas?
Por que se atrasam em descobrir a melhor invenção do século?

Eu tenho uma alma que não me obedece. Que tem compulsão por cair. Eu ordeno: anda! Ela desfalece. Ela se debate e arde em febre, e a cada ano envelhece com os olhos cheios d'água, esperando esbarrar numa outra alma nos despropósitos do acaso.

Se ao menos houvesse um analgésico para a alma, ela faria igual meu corpo: seguiria se arrastando debilitada, mas determinada a fingir enquanto cumpre suas tarefas diárias. Com sua força renovada, enquanto definha por dentro, a cada seis em seis horas. Que alma linda seria quando ao invés de trair a mim, traísse o resto do mundo!

E talvez, algum dia, ela se tornasse tão fraca que seria incapaz de produzir febre.



sábado, 17 de janeiro de 2009

...


Do pesadelo de acordar

Eu também tenho pesadelos. Ao contrário de Tereza, eu não sonho que espeto agulhas sob as unhas para aliviar uma dor aguda emocional. Mas minha solidão é tamanha ao acordar, que no momento em que tento abrir os olhos ainda colados, eu desejo que tivesse sonhado e sentido agulhas espetadas sob minhas unhas. Talvez doesse menos que essa ausência eterna, que esse buraco na alma.

Quando eu li "A Insustentável Leveza do Ser" eu odiei Tereza. Porque Tomas era uma personagem fascinante e Tereza, com seu ciúme doentio e total incapacidade de perceber a grandeza do amor sentido por ela, o transformou num covarde consumido pela culpa. Foi a culpa, ou compaixão como se argumenta, que o levou a casar e dar a ela um cachorro. Que o levou a voltar à sua cidade ocupada onde deixou de ser médico para ser limpador de janelas. E que, finalmente, o conduziu a um final medíocre, morrendo numa estrada do interior dirigindo um caminhão.

Sobre compaixão há esse trecho que hoje acho bonito, mas que me provocou fúria na época da leitura. Dêem o devido desconto para quem estava operada, havia acabado de perder um grande amor e, ainda por cima, sido humilhada por isso. Eu obviamente fazia analogias esdrúxulas e superficiais do livro com a minha vida, sem ao certo compreender o significado de todos os elementos.

"Nas línguas derivadas do latim a palavra compaixão significa que não se pode olhar o sofrimento do próximo com o coração frio; em outras palavras: sente-se simpatia por quem sofre. Uma outra palavra que tem mais ou menos o mesmo sentido, piedade (em inglês pity, em italiano pietà etc.) sugere até uma espécie de indulgência para com o ser que sofre. Ter piedade de uma mulher é se sentir mais favorecido do que ela, é se inclinar, abaixar-se até ela.

É por isso que a palavra compaixão em geral inspira desconfiança; designa um sentimento considerado de segunda ordem que não tem muito a ver com o amor. Amar alguém por compaixão não é amar de verdade.

Nas línguas que formam a palavra compaixão não com a raiz passio, "sofrimento", mas com substantivo "sentimento", a palavra é empregada mais ou menos no mesmo sentido, mas dificilmente se pode dizer que designa um sentimento mau ou medíocre. A força secreta de sua etimologia banha a palavra numa outra luz e lhe dá um sentido mais amplo: ter compaixão (co-sentimento) é poder viver com alguém sua infelicidade, mas é também sentir com esse alguém qualquer outra emoção: alegria, angústia, felicidade, dor. Essa compaixão (no sentido de soucit, wspolczucie, Mitgefühl, medkänsla) designa, portanto, a mais alta capacidade de imaginação afetiva, a arte da telepatia das emoções. Na hierarquia dos sentimentos, é o sentimento supremo.

Quando Tereza sonhava que enfiava agulhas sob as unhas, ela se traía, revelando assim a Tomas que mexia em suas gavetas às escondidas. Se alguma outra mulher tivesse feito isso com ele, nunca mais ele teria lhe dirigido a palavra. Como Tereza sabia disso, dizia: "Mande-me embora!". Ora, ele não somente não a mandou embora, como lhe tomou a mão e beijou a ponta de seus dedos, pois, naquele momento, ele próprio sentia a dor que ela experimentava sob as unhas, como se os nervos de Tereza estivessem diretamente ligados ao cérebro dele.

Aquele que não possui o dom diabólico da compaixão (co-sentimento) só pode condenar friamente o comportamento de Tereza, pois a vida particular do outro é sagrada e não se abrem as gavetas onde ele guarda correspondência pessoal. Mas como a compaixão se tornara o destino (ou a maldição) de Tomas, parecia-lhe que era ele mesmo que tinha se ajoelhado em frente à gaveta de sua escrivaninha e que não conseguia tirar os olhos das frases escritas pela mão de Sabina. Compreendia Tereza, e não somente era incapaz de lhe querer mal, como a amava ainda mais."


Hoje, pensando melhor, eu odiei esta personagem por cada milímetro em que eu poderia ser igual a ela. Por cada mesquinharia que eu seria capaz de desejar reproduzir, embora incapaz de fazê-lo.
E é assim que começo a tecer considerações antigas sobre uma relação D/s.



Submissão e dependência

"De um lado, a eterna estrela,
e do outro a vaga incerta,

meu pé dançando pela
extremidade da espuma,
e meu cabelo por uma
planície de luz deserta.

Sempre assim:
de um lado, estandartes do vento...
- do outro, sepulcros fechados.
E eu me partindo, dentro de mim,
para estar no mesmo momento
de ambos os lados."
(Trecho da poesia "Canção quase inquieta", de Cecília Meireles)




No passado eu me vi escrevendo esse texto do alto de uma autoridade moral que eu não tenho, infelizmente. A tese que eu buscava sustentar era a de que, por mais que houvesse entrega, por mais que houvesse amor, a submissa não deveria tornar-se dependente do Dono.

Essa preocupação com dependência foi algo que me bateu logo no início, enquanto eu buscava entender em que esferas da vida a submissa abria mão de sua autonomia. Conforme eu observava diferentes experiências de relação, umas com maior ingerência do Dono, outras com menos, essa preocupação permanecia. O que seria da sub quando a relação acabasse? Como ela faria para se reerguer? Meu pressuposto é de que tudo sempre acaba, na tentativa de tornar os acontecimentos um pouquinho menos doloridos. E numa relação D/s em que a outorga de poder seja total, uma TGE por exemplo? O que é a submissa quando Dono se vai? Um grande nada? Espero que não.

Não tenho opinião concreta sobre o assunto, mas torço para que ser submissa não seja sinônimo de ser extremamente dependente. São linhas muito tênues que separam entrega e total inaptidão para viver sozinha.

Sem estabelecer nenhum padrão sobre como devem funcionar os relacionamentos D/s, até porque isso não faz sentido, minha meta era partir da idéia de Roberto Freire, em "Utopia e Paixão", de que as relações devem ser suplementares e não complementares. Que cada um deve se ver como um todo que tem coisas a acrescentar e a ensinar para o outro através da vivência.

Tudo se complica quando alguém se enxerga como parte ou metade, como no mito sobre a origem do amor em que Zeus desfere fogo dos céus, dividindo o ser humano de duas cabeças, quatro pernas e quatro braços, condenando-o desde então a passar a vida inteira procurando sua outra metade.



Quando nos sentimos incompletos e parte de alguém, sentimos que algo morre com a gente quando a relação acaba. Ao passo que, em tese, se estivéssemos completos, apesar de toda a dor, estaríamos prontos para seguir em frente.

"É dos mais neuróticos e parasitários o amor que leva uma pessoa a achar a outra um pedaço de si mesma. O romantismo também foi e é vítima do autoritarismo. Por isso tornou-se doentio. O saudável, nas relações amorosas seria, primeiro, que a pessoa já tivesse conseguido crescer até o tamanho total de si própria. Depois, aprendesse a viver por si mesma e de si mesma. Só então acasalasse, com alguém que tivesse tido igual desenvolvimento e soubesse viver de si mesma também. Assim, inteiros e juntos, começariam a viver sensações inéditas, extraordinárias, impossíveis de se viver sozinho e que não existem em nós nem sequer em semente. É o amor suplementar de que falamos (...)

Quando, por uma razão qualquer, a relação amorosa se desfaz, o que se desfaz de fato é só a relação amorosa e não as vidas e a integridade de cada um. E o que se tem observado é que por mais denso que seja o amor, quando ele se desfaz nas relações sadias (suplementares) surgem logo novos encontros, novos namoros e seduções, o amor pode se refazer. É outro, original, porém com intensidade e qualidade semelhantes ao anterior."

Já repararam que toda vez que vou abordar submissão acabo falando de amor? Talvez seja uma doença minha fazer sempre essa associação. Loucura ou lucidez, dádiva ou maldição, prossigamos.

Se a submissa de fato se entrega, não importa se por amor, ou se o amor advém justamente da entrega; partindo do pressuposto de que há amor, a dependência será elemento, necessariamente, da relação?

A nossa tendência é exaltar sentimentos desesperados e, muitas vezes, pesados. Como se só existisse amor com peso. Como se não pudesse existir amor na leveza. Essa é uma pergunta que não sei responder, realmente. Mas acredito que se impõe como desafio aos nossos corações pesados, repletos de grandezas mas também de sentimentos humanos como carência, ciúmes, insegurança, vaidade e tantos outros, amar com leveza, apesar e a despeito disso tudo. É como um elefante que deseja ser beija-flor, e voar... Superficial, alguns acusariam, ou superação de nós mesmos e de tudo o que necessitamos? Mais um pouco de Milan Kundera:

"Todos acreditamos que é impensável que o amor de nossa vida possa ser uma coisa leve, uma coisa que não pese nada; achamos que nosso amor é o que devia ser; que sem ele nossa vida não seria nossa vida."

"Mas será mesmo atroz o peso e bela a leveza?

O mais pesado dos fardos nos esmaga, verga-nos, comprime-nos contra o chão. Na poesia amorosa de todos os séculos, porém, a mulher deseja receber o fardo do corpo masculino. O mais pesado dos fardos é, portanto, ao mesmo tempo a imagem da realização vital mais intensa. Quanto mais pesado é o fardo, mais próxima da terra está a nossa vida, e mais real e verdadeira ela é.

Em compensação, a ausência total de fardo leva o ser humano a se tornar mais leve do que o ar, leva-o a voar, a se distanciar da terra, do ser terrestre, a se tornar semi-real, e leva seus movimentos a ser tão livres como insignificantes.

O que escolher então? O peso ou a leveza?

Foi a pergunta que Parmênides fez a si mesmo no século VI antes de Cristo. Segundo ele, o universo está dividido em pares de contrários: a luz/ a escuridão; o grosso/ o fino; o quente/ o frio; o ser/ o não-ser. Ele considerava que um dos pólos da contradição é positivo (o claro, o quente, o fino, o ser), o outro, negativo. Essa divisão em pólos positivo e negativo pode nos parecer de uma facilidade pueril. Exceto em um dos casos: o que é positivo, o peso ou a leveza?

Parmênides respondia: o leve é positivo, o pesado é negativo. Teria ou não teria razão? A questão é essa. Só uma coisa é certa. A contradição pesado/ leve é a mais misteriosa e a mais ambígua de todas as contradições."

"Ao contrário de Parmênides, Beethoven parecia considerar o peso como algo positivo. "Der scher gefabte Entschlub", a decisão gravemente pesada está associada à voz do Destino ("Es muß sein!"); o peso, a necessidade e o valor são três noções intrinsecamente ligadas: só é grave aquilo que é necessário, só tem valor aquilo que pesa.

Essa convicção nasce da música de Beethoven e embora seja possível (se não provável) que ela seja mais da responsabilidade dos exegetas de Beethoven que do próprio compositor, todos nós a compartilhamos mais ou menos hoje em dia: para nós, o que faz a grandeza do homem é ele carregar seu destino como Atlas carregava nos ombros a abóboda celeste. O herói de Beethoven é um halterofilista que levanta pesos metafísicos. (...)

"Es muß sein! Tem que ser assim", Tomas repetia para si mesmo, mas logo começou a ter dúvidas: teria mesmo que ser assim?

Sim, teria sido insuportável ficar em Zurique e imaginar Tereza sozinha em Praga.

Mas quanto tempo ficaria atormentado pela compaixão? Toda vida? Um ano inteiro? Um mês? Ou só uma semana?

Como podia saber? Como podia verificar?

Em trabalhos práticos de física, qualquer aluno pode fazer experimentos para verificar a exatidão de uma hipótese científica. Mas o homem, por ter apenas uma vida, não tem nenhuma possibilidade de verificar a hipótese por meio de experimentos, por isso não saberá nunca se errou ou acertou ao obedecer a seu sentimento."

Termino então esse texto truncado e confuso sem respostas. Tenho dentro de mim um sentimento denso, grandioso e pesado; sou dependente e sofro com o fim; mas tento, a cada dia, fazer disso algo leve, é essa minha luta: encantar e fazer sorrir mesmo à distância para assim, ser feliz também.


quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Para hoje...




apenas um pouco de carência.

(senão não seria eu, oras)

sábado, 10 de janeiro de 2009

Piromaníaco

Esse é um texto que um amigo escreveu para mim, há muitos anos atrás.



fósforos. eu gosto de acender fósforos para ver o palito queimar inteiro. eu acendo e faço ele queimar devagar, a chama vai andando, se afastando da cabeça, chegando perto do meu dedo. quando ela está quase me queimando eu pego na outra ponta, já em carvão, e vejo o fósforo queimar seu último pedaço de madeira. aquele pedaço de carvão retorcido na minha mão me dá uma satisfação sem tamanho por mais ou menos dois segundos, daí eu jogo ele fora e acendo outro.

as vezes eu não consigo queimar eles inteiros, as vezes eu queimo o dedo e acabo largando o fósforo, ou ele quebra e caí. é muito comum só a cabeça se soltar, quando isso acontece fica uma brasa vermelha onde ela estava, que se apaga e deixa uma cinza leve no lugar.

quando eu não consigo consumir um fósforo até o final eu acendo outro, queimo o que faltava do anterior e tento terminar o recém acendido. desde que eu comecei a contar já queimei 407 caixas de 40 fósforos desse jeito. todos os meus dedos tem cicatrizes grandes, principalmente os polegares, neles eu já não tenho impressão digital.

no início eu só fazia com palitos longos, mas eles foram perdendo a graça, eu queria a chama mais perto, então passei para os pequenos. eu não gosto de me queimar, dói e machuca, as vezes de maneira séria. vocês não imaginam como é difícil fazer coisas simples com queimaduras de terceiro grau na mão. mas eu não consigo parar de acender os fósforos.

o fogo me fascina. as cores, a falta de fronteiras, a falta de matéria. o jeito como a chama afeta o ar em volta, que ganha uma aura invisível, uma aura transparente que transfora o que passa por ela. a fumaça que sempre sobe em fio, um fio que se abre no ar e desaparece. não existe nada mais bonito que o movimento do fogo, consumindo aos poucos, dançando com o vento, brincando com a minha respiração.

um dia eu quis beijar o fogo, me queimei. eu sabia que ia me queimar, não sou estúpido, foi a chama que me pediu um beijo, e eu, apaixonado, obedeci. tive que enfaixar a cara, foi difícil comer e falar por um tempo, decidi que não ia mais fazer isso e voltei a só acender meus fósforos. mas pouco depois, quando eu estava vendo o penúltimo fósforo de uma caixa terminar de queimar ele pulou da minha mão.

esse fósforo que pulou caiu na minha camisa que começou a queimar. eu pensei em apagar, podia ter apagado, mas não consegui. o fogo queria me abraçar, eu percebi isso e eu também queria abraçar ele, deixei queimar. eu nunca vi nada tão bonito quanto a minha camisa em chamas, o fogo subindo e se espalhando pelo meu corpo. mas em seguida veio a dor. ela cresceu rápido e me deixou cego, de repente eu só conseguia pensar nela. no último segundo de lucidez eu quis morrer, em nenhum momento eu quis apagar o fogo.

depois disso eu desmaiei, acordei no hospital. lembro de muita gente em volta, lembro da fisioterapia, lembro muito da internação. depois de receber alta no hospital me colocaram em uma clínica psiquiátrica, não tinham fósforos lá. eu me comportei, falei tudo o que todo mundo queria ouvir e de vez em quando eu via meu amor, quando alguém acendia um cigarro, ou quando eu visitava a cozinha. mas não olhava muito, para não perceberem que eu ainda estava apaixonado.

recebi alta ontem, já estou em casa e voltei para meus fósforos. eu sei que não posso mais tocar no fogo, ele me machuca demais. então eu só acendo os fósforos para olhar o meu amor. acendo um por um, queimando inteiros, sem deixar nenhum cair, sem encostar na chama, sem queimar os dedos. um por um, dentro de uma banheira cheia de gasolina.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Invocação ao amor


Pedir-te a sensação
a água
o travo

aquele odor antigo
de uma parede
branca

Pedir-te da vertigem
a certeza
que tens nos olhos quando
me desejas

Pedir-te sobre a mão
a boca inchada
um rasto de saliva
na garganta

pedir-te que me dispas
e me deites
de borco e os meus seios
na tua cara

Pedir-te que me olhes e me aceites
me percorras
me invadas
me pressintas

Pedir-te que me peças
que te queira
no separar das horas
sobre a língua

Meu ciúme
meu perfil
minha fome

meu sossego
minha paz
minha aventura

Meu sabor
minha avidez
saciedade

minha noite
minha angústia
meu costume

Maria Teresa Horta
Identidade feminina?
Quem somos em face do que conquistamos e da crise da identidade masculina?

Sempre tive problemas com discussões sobre "natureza" feminina ou masculina. Me parecia pouco lógico esse conceito de algo que nasce com um gênero como uma maldição. Faz muito mais sentido a idéia de que determinados papéis diferenciados foram atribuídos aos gêneros por diversas implicações sociológicas, associadas a algumas características biológicas (só aqui se pode falar de natureza) e que, por terem sido repetidos reiteradamente tornaram-se quase naturais. Até que, com razão, nós quisemos nos libertar desse ciclo de opressão.

Temos lutado por décadas contra o flagelo da opressão dos homens sobre as mulheres. Reivindicamos direitos muito justos, e sobretudo "igualdade", a qual não conquistamos senão de uma maneira perversa. Igualdade de deveres, não de direitos. Só para dar um exemplo, tomando como parâmetro o Ocidente, a mulher ainda é muitas vezes considerada intelectualmente inferior em vários ramos profissionais. Mas somos suficientemente "iguais" para assumir responsabilidades antes imputadas ao universo masculino: força, vitalidade, coragem para sustentar pontos de vista e lutas, defesa.

No processo de domesticação da sociedade capitalista - que nós, mulheres, também sofremos - nós vimos, nos compadecemos, deixamos criar e criamos homens fracos, conformados, acuados, frouxos.

Diante do homem civilizado, despido de coragem, inseguro, vaidoso, que quer agradar a gregos e troianos, coube a nós sustentar as decisões difíceis e fazer colocações duras. Nós tomamos as medidas drásticas de força sem que ninguém nos defenda.

Força. Vestimos esta carapaça com um sorriso no rosto que tenta esconder qualquer fragilidade. Mas ela é pesada e paira sobre nossas cabeças.

Não é que não tenhamos que ser fortes. Não é que esse papel seja apenas dos homens e nós, de volta ao tanque. Mas não pode ser só nosso. Não podemos ficar a suprir lacunas para sempre.




Seres fortes devem ser construídos e estimulados em ambos os gêneros. É preciso muita força para ser uma mulher trabalhadora e bem sucedida. É preciso igual força para ser uma dona de casa e educar bem seus filhos. Diante de uma discussão pseudo-intelectualizada e militante, tem mais coragem atualmente aquela que banca que seu sonho sempre foi ser mãe e esposa. É só falar sobre o que sente e esperar uma chuva de pedras.

Se o que lutamos tanto para conquistar foi liberdade e autonomia, por que não podemos respeitar escolhas conscientes? Só por que não se encaixam no estereótipo de mulher moderna? Até quando vamos aprisionar pessoas na tese muito legítima de que o meio influência as escolhas e as subjetividades? Atés quando faremos isso de uma forma praticamente positivista?

É claro que o meio influencia as pessoas, mas será que determina e constrói absolutamente tudo o que é humano? O que é humano então? Será que pessoas lúcidas devem ser sempre igualadas a massas amorfas, estúpidas e acríticas?

Nesse ponto é que o feminismo deveria tentar ser mais generoso com o BDSM. Não de forma a prescrevê-lo como conduta, mas como respeito à escolha refletida de uma mulher livre.

Muitas das minhas ambições estão próximas do estereótipo da "mulher moderna". Quero ter uma carreira bem sucedida na profissão que gosto e milito; acho a instituição casamento uma bobagem; sequer sinto vontade de ser mãe e isso não faz parte dos meus sonhos, embora tudo possa mudar nessa vida. Nesse sentido, recuso meu papel biologico e social pré-estabelecido.

Sim, eu observo que vivemos numa sociedade machista. Eu observo que a sexualidade está repleta de símbolos patriarcais e falocêntricos. Eu percebo como a mulher é bombardeada com exigências estéticas e se flagela com isso. E eu aceito minha beleza dissonante e meu desleixo em cumprir esses padrões. Eu aceito minha sexualidade dissonante e que, de maneira consciente, gerenciando todos esses elementos, eu seja a mulher mais forte possível no meu cotidiano, mas na cama e em uma relação afetiva eu abra mão do controle. Eu aceito meu prazer dissonante e estéril que me conforta nesse mundo, e me sinto bem em ser currada enquanto me chamam de puta.

Se de fato feminilizaram a submissão e sexualidaram a feminilidade, será mesmo a solução para isso abstenção e abolir da vida os prazeres? Construiremos um mundo mais "justo", mais "igual", porém mais duro e frígido?

Como mulher autônoma, depois de me despir de preconceitos, me permito a vivência da submissão. E me re-significo como mulher, mais liberta do que antes. Assim respeito o que sinto no meu íntimo e cultuo de forma saudável meu amor pelo sexo e pela entrega. Me sinto plena, valorizada, e não me torno inferior por isso.

Se a proposta é destruir papéis opressivos, libertemo-nos sim de tarefas pré-atribuídas aos gêneros. Mas não precisamos substituir, nesse maravilhoso novo mundo, a opressão da mulher e de seu corpo por outra opressão, só que politicamente correta nos tempos atuais, e pela deslegitimação de seu prazer. Construamos vivências novas. Respeitemo-nos. E percebamos que somos bichos apesar de tudo. Nosso instinto sexual está acima de qualquer premissa acadêmica.





quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

2009.


Dizem que o que se faz no primeiro dia do ano se repete o ano inteiro.



















Verdade ou superstição?