quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Es muß sein!

2009

Eu queria fechar esse blog mas não consegui. Me deu vontade de fazer um apanhado de tudo o que aconteceu e que pulsa dentro de mim, prestes a explodir, nessa hora do dia em que já gastei tanta vida formulando teses para ajudar os outros que mal consigo encadear um pensamento a meu favor. Acho que nunca soube escrever bem coisas íntimas, por isso a fuga do campo das artes para o direito.

Mas vou começar essa confusão daqui falando de destino.

Quando se fala de destino, como já exemplifiquei com alguns trechos do "a insustentável leveza do ser", é comum que se pense o destino como um fardo. Os resquícios de eternidade colados à nossa história, não importa em qual momento da vida estejamos ou quantas reviravoltas ela tenha dado, é que parecem ser o fardo pesado chamado destino: pode ser heróico e por isso alardeado por todos os cantos por quem carrega a sua cruz; pode ser vergonhoso e por isso escondido e considerado repugnante; o destino é visto como um peso.

O destino tem o fardo de ser fardo, porque diariamente são agregados a ele pretensos valores, acontecimentos ou sentimentos de forma leviana. Tentam por aí inscrever qualquer coisa no destino, como se qualquer coisa pudesse ser nele insculpida e por isso adquirir eternidade. Nada é eterno até que se chegue ao fim (parece um paradoxo, mas não é). O amor é o tema mais recorrente nesse sentido, palavras são gastas pelas pessoas ao vento por aí, é um tal de "eu te amarei para sempre", "eu sempre te serei honrada", "estarei para sempre morto por dentro", "nunca esquecerei ou me livrarei de um sentimento", sem nem ao menos verificarem a veracidade dessas afirmações, que está ligada diretamente à intenção com que elas são ditas. A falta de autocrítica é tão grande que resvala em até mesmo quem só queria ficar quieto no seu canto. Pobre destino, o do destino: ele tem servido nas relações interpessoais até para escravizar o outro. Eu te escravizo com o meu fardo, que te fere, e você me escraviza com o seu.

Associa-se sentimentos ao eterno como forma de legitimação. Às vezes afirmar reiteradamente pode ser necessidade de fortalecer o que na verdade é frágil como um castelo de areia. Falamos sobre as qualidades ou maldições do nosso destino porque precisamos nos convencer e convencer os outros; o destino, portanto, nunca é algo sozinho e absoluto pairando sobre nossos ombros. O meu destino só existe na minha relação com o outro e para o outro.

A desfiguração do destino, repito, para mim, se dá quando necessariamente o identificamos com o eterno. Não sei se consigo me fazer entender, mas o destino para mim não é aquilo que"vai ser assim como uma maldição ou benção inevitável", e sim aquilo que "só podia ser assim, mesmo não tendo existido promessas, mesmo tendo havido uma diversidade enorme de possibilidades de escolha, qualquer caminho levaria até aqui, porque tenho um senso de missão e, no final de tudo, simplesmente foi assim". Só que a missão, mesmo difícil, é leve! Justamente porque parece uma brincadeira: você tropeça, tropeça, e acaba rindo, porque nunca sabe onde vai parar. Mas quando pára, era justamente ali onde você deveria estar! E essa é uma das funções de você estar no mundo, executar tal tarefa naquele momento, ensinar ou aprender alguma coisa, sem a intenção de obter vantagens pessoais daquilo. Missão.

Então o destino não se identifica com o "deve ser assim!", mas com uma boa risada, depois de várias mudanças, percebendo que não se estaria em outro lugar.

Por isso é que nenhuma escolha é errada. Só é errado não fazer escolha alguma.

Esse texto é antigo e inacabado, de meses atrás, e antes de publicar o novo post resolvi publicar o rascunho. Não há conclusão. Eu vejo o destino como o equilíbrio, na minha cabeça me vem essa carta, tão consoladora em determinados momentos.

A vitória. O carro anda, puxado por forças provavelmente opostas, ou pelo menos distintas, dos cavalos azul e vermelho, sem que o nosso herói tenha nas mãos as rédeas. Mas o herói não pode se escusar de não ter as rédeas. A mente dele deseja, demanda. É a vontade que iguala querer a poder. O poder está na vontade, e a concretização do querer, nos atos. O carro anda para frente, porque o herói quer. Senão ele pendurar-se-ia, por livre e espontânea vontade, pelo pé, como o enforcado.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

"Perhaps he wanted to bury his life...
... along the side of his past"



Nascer de novo


Nascer: fincou o sono das entranhas.
Surge o concreto,
a dor de formas repartidas.
Tão doce era viver
sem alma, no regaço
do cofre maternal, sobrio e cálido.
Agora,
na revelação frontal do dia,
a consciência dos limites,
o nervo exposto dos problemas.

Sondamos, inquirimos
sem resposta:
Nada se ajusta, deste lado
à placidez do outro?
É tudo guerra, dúvida
no exílio?
O incerto e suas lajes
criptográficas?
Viver é torturar-se, consumir-se
à míngua de qualquer razão de vida?

Eis que um segundo nascimento,
não advinhado, sem anúncio,
resgata o sofrimento do primeiro,
e o tempo se redoura.
Amor, este o seu nome.
Amor, a descoberta
de sentido no absurdo de existir.
O real veste nova realidade,
a linguagem encontra seu motivo
até mesmo nos lances de silêncio.

A explicação rompe das nuvens,
das águas, das mais vagas circunstâncias:
Não sou Eu, sou o Outro
que em mim procurava seu destino.
Em outro alguém estou nascendo.
A minha festa,
o meu nascer poreja a cada instante
em cada gesto meu que se reduz
a ser retrato,
espelho,
semelhança
de gesto alheio aberto em rosa.

Carlos Drummond de Andrade

(Para o fechamento oficial deste blog)

terça-feira, 11 de agosto de 2009

O homem público nº 1


Tarde aprendi
bom mesmo
é dar a alma como lavada.
Não há razão
para conservar
este fiapo de noite velha.
Que significa isso?
Há uma fita
que vai sendo cortada
deixando uma sombra
no papel.
Discursos detonam.
Não sou eu que estou ali
de roupa escura
sorrindo ou fingindo
ouvir.
No entanto
também escrevi coisas assim,
para pessoas que nem sei mais
quem são,
de uma doçura
venenosa
de tão funda.

Ana Cristina Cesar

terça-feira, 7 de julho de 2009

Reconhecimento do amor

Carlos Drummond de Andrade

Amiga, como são desnorteantes
os caminhos da amizade.
Apareceste para ser o ombro suave
onde se reclina a inquietação do forte
(ou que forte se pensava ingenuamente).
Trazias nos olhos pensativos
a bruma da renúncia:
não querias a vida plena,
tinhas o prévio desencanto das uniões para toda a vida,
não pedias nada,
não reclamavas teu quinhão de luz.
E deslizavas em ritmo gratuito de ciranda.

Descansei em ti meu feixe de desencontros
e de encontros funestos.
Queria talvez - sem o perceber, juro -
sadicamente massacrar-te
sob o ferro de culpas e vacilações e angústias que doíam
desde a hora do nascimento,
senão desde o instante da concepção em certo mês perdido na História,
ou mais longe, desde aquele momento intemporal
em que os seres são apenas histórias não formuladas
ao caos universal.

Como nos enganamos fugindo ao amor!
Como o desconhecemos, talvez com receio de enfrentar
sua espada coruscante, seu formidável
poder de penetrar o sangue e nele imprimir
uma orquídea de fogo e lágrimas.
Entretanto, ele chegou de manso e me envolveu
em docura e celestes amavios.
Não queimava, não siderava; sorria.

Mal entendi, tonto que fui, esse sorriso.
Feri-me pelas próprias mãos, não pelo amor
que trazias para mim e que teus dedos confirmavam
ao se juntarem aos meus, na infantil procura do Outro,
o Outro que eu me supunha, o Outro que te imaginava,
quando - por esperteza do amor - senti que éramos um só.

Amiga, amada, amada amiga, assim o amor
dissolve o mesquinho desejo de existir em face do mundo
com olhar pervagante e larga ciência das coisas.
Já não defrontamos o mundo: nele nos diluímos,
e a pura essência em que nos transmutamos dispensa
alegorias, circunstâncias, referências temporais,
imaginações oníricas,
o vôo do Pássaro Azul, a aurora boreal,
as chaves de ouro dos sonetos e dos castelos medievos,
todas as imposturas da razão e da experiência,
para existir em si e por si,
a revelia de corpos amantes,
pois já nem somos nós, somos o número perfeito:
UM.

Levou tempo, eu sei, para que o Eu renunciasse
à vacuidade de persistir, fixo e solar,
e se confessasse jubilosamente vencido,
até respirar o júbilo maior da integração.
Agora, amada minha para sempre,
nem olhar temos de ver nem ouvidos de captar
a melodia, a paisagem, a transparência da vida,
perdidos que estamos na concha ultramarina de amar.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Quando está frio

De Fernando Pessoa, para as poucas pessoas (muito) queridas. ;)
Me lembrou de discussão sobre o aspecto positivo da resignação que tive com jullia{Ivan} há um tempo...


Quando está frio

Quando está frio no tempo do frio, para mim é como se estivesse agradável,
Porque para o meu ser adequado à existência das cousas

O natural é o agradável só por ser natural.


Aceito as dificuldades da vida porque são o destino,

Como aceito o frio excessivo no alto do Inverno -

Calmamente, sem me queixar, como quem meramente aceita,

E encontra uma alegria no fato de aceitar -

No fato sublimemente científico e difícil de aceitar o natural inevitável.


Que são para mim as doenças que tenho e o mal que me acontece

Senão o Inverno da minha pessoa e da minha vida?

O Inverno irregular, cujas leis de aparecimento desconheço,

Mas que existe para mim em virtude da mesma fatalidade sublime.

Da mesma inevitável exterioridade a mim,
Que o calor da terra no alto do Verão

E o frio da serra no cimo do Inverno.


Aceito por personalidade.

Nasci sujeito como os outros a erros e a defeitos,

Mas nunca ao erro de compreender demais,

Nunca ao erro de querer compreender só com a inteligência.

Nunca ao defeito de exigir do Mundo

Que fosse qualquer cousa que não fosse o Mundo.


(isso é lindo demais!!!)


________E por isso e tudo o mais, meu céu é este: _____________



-> Como sempre vai ser: torto, incompleto, ouvindo vozes ao fundo como música, me questionando se estou enlouquecendo. :)

quinta-feira, 7 de maio de 2009

O insustentável.

A felicidade reside nos pequenos momentos, lembrava. Quando os pensamentos se apossavam dela sorrateiramente, a menina podia sentir, ouvir, ser-tocar o tempo, naquela aparente boba e pequena fração de instante em que os infinitos copos de melancolia cabiam num sorriso.
É isso, ela sorria, sorria oras, e disse com os olhos brilhantes:

"Há muito tempo meu coração não ficava tão leve".

E de tanto almejar a leveza e falar nela, a menina ficou mais leve que o ar. Seu corpo era luz, seu peito explodia em cores, ela subitamente se tornara um espectro que ia esmorecendo, se dissolvendo no ar...


Enquanto evaporava até o céu, um trecho se repetia em sua cabeça:
"Einmal ist keinmal. Uma vez não conta. Uma vez é nunca. A história da Boêmia não vai se repetir uma segunda vez, nem a história da Europa. A história da Boêmia e a história da Europa são dois esboços que a inexperiência fatal da humanidade traçou. A história é tão leve quanto a vida do indivíduo, insustentavelmente leve, leve como uma pluma, como uma poeira que voa, como uma coisa que vai desaparecer amanhã."

Sentia-se apática. Não via sentido nas coisas. Não sabia mais identificar os dias da semana. Com os olhos secos via as cores borradas a se misturar: sua distância do mundo a fascinava e assustava. Por vezes se desconectava da realidade: seria isso sinal de loucura?

E aguardava o dia em que sua alma seria precipitada de volta às profundezas do mar. E em que faria um bonito arco-íris.

sábado, 25 de abril de 2009


















Farewell y los sollozos

1

Desde el fondo de ti, y arrodillado,
un niño triste, como yo, nos mira.

Por esa vida que arderá en sus venas
tendrían que amarrarse nuestras vidas.

Por esas manos, hijas de tus manos,
tendrían que matar las manos mías.

Por sus ojos abiertos en la tierra
veré en los tuyos lágrimas un dia.

2

Yo no lo quiero, Amada.

Para que nada nos amarre
que no nos una nada.

Ni la palabra que aromó tu boca,
ni lo que no dijeron las palabras.

Ni la fiesta de amor que no tuvimos,
ni tus sollozos junto a la ventana.

3

(Amo el amor de los marineros
que besan y se van.

Dejan una promesa.
No vuelven nunca más.

En cada puerto una mujer espera:
los marineros besan y se van.

Una noche se acuestan con la muerte
en el lecho del mar.)

4

Amo el amor que se reparte
en besos, lecho y pan.

Amor que puede ser eterno
y puede ser fugaz.

Amor que quiere libertarse
para volver a amar.

Amor divinizado que se acerca.
Amor divinizado que se va.

5

Ya no se encantarán mis ojos en tus ojos,
ya no se endulzará junto a ti mi dolor.

Pero hacia donde vaya llevaré tu mirada
y hacia donde camines llevarás mi dolor.

Fuy tuyo, fuiste mía. Qué más? Juntos hicimos
un recodo en la ruta donde el amor pasó.

Fui tuyo, fuiste mía. Tú serás del que te ame,
del que corte en tu huerto lo que he sembrado yo.

Yo me voy. Estoy triste: pero siempre estoy triste.
Vengo desde tus brazos. No sé hacia dónde voy.

...Desde tu corazón me dice adiós un niño.
Y jo le digo adiós.

Pablo Neruda

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Eu nunca guardei rebanhos

Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pelas mãos das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.

Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.

Como um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.

Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.

Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.

E se desejo às vezes
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),
É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.

Quando me sento a escrever versos
Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,
Sinto um cajado nas mãos
E vejo um recorte de mim
No cimo dum outeiro,
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas idéias,
Ou olhando para as minhas idéias e vendo o meu rebanho,
E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz
E quer fingir que compreende.

Saúdo todos os que me lerem,
Tirando-lhes o chapéu largo
Quando me vêem à minha porta
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.
Saúdo e desejo-lhes sol,
E chuva, quando a chuva é precisa,
E que as suas casas tenham
Ao pé duma janela aberta
Uma cadeira predileta
Onde se sentem, lendo os meus versos.
E ao lerem os meus versos pensem
Que sou qualquer cousa natural -
Por exemplo, a árvore antiga
À sombra da qual quando crianças
Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
E limpavam o suor da testa quente
Com a manga do bibe riscado.

Alberto Caeiro, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa







domingo, 5 de abril de 2009

Sobre cacos e cordas


Acaso num mundo de fantasia existisse uma corda que, com o uso e o tempo arrebentasse, dela cairiam todos aqueles que estivessem por cima a pisá-la.

O golpe ao chão seria duro, no entanto tal tese não procede: o que existe são pessoas (sim, pessoas, por mais que isso possa causar surpresa aos menos observadores), que tentam da sua forma fazer algo belo, com todos os seus defeitos mas também qualidades e generosidades. Essas pessoas sentem, cantam, riem e também choram sozinhas num banheiro sujo, como já dizia Cazuza.

Pessoas são capazes de superações. São capazes de dar tudo e desse dar tudo não sobrar nada, apenas uma dor que ameaça explodir o peito. Mas são capazes de, já deformadas, já com dificuldade de reconhecerem a si mesmas, parar.

Desistir de alguma coisa pode parecer fraqueza, e frequentemente é. Porém pode ser um ato de coragem. Pode ser partir de uma dor que você já conhece para outras, desconhecidas; pode significar a escolha por enfrentar o seu maior medo. Desistir não dói tanto como imaginam, pelo menos não quando se sabe de cara limpa que se tentou tudo o que podia. Pelo contrário, proporciona uma estranha paz, essa sensação tão distante no tempo.

Eu havia dito uma vez que amar e se entregar era se jogar num abismo sem ter a menor certeza que haveria alguém do outro lado para nos socorrer. Ainda acredito nisso, e acho que o amor seria um sentimento menor se fosse diferente. Mas os cacos da nossa queda ao chão, esses não devem ser eternos nem escondidos.

As mãos à nossa espera no fundo do poço são as nossas mesmas; somos nós que devemos encontrar força na nossa infinita capacidade de recomposição. Nessa hora a gente ri porque nunca pensou em guardar os cacos em caixa alguma. Porque a vida não existe para ser feita de mágoas nem para que nossas dores sejam adoradas em altares. O amor não é feito para doer, relações não são feitas para doer; existem para dividir tudo (seres sociáveis que somos), inclusive dores, mas o que se busca é a convivência harmoniosa, são as alegrias, descobertas, cumplicidades, construções, revelações e ensinamentos que um ser humano (pessoa :p) pode proporcionar ao outro.

Dor, concordo com minha amiga jullia{Ivan}, autora de reflexões sempre muito boas, é efeito colateral.
Dor não é estandarte nem essência de nada, nem desejo de quem não seja masoquista.

Nesse sentido cada minuto que passa e cada coisa que se transforma não é algo que perdemos. Cada minuto é ganho. A gente deve passar o tempo como quem vive, não como quem está constantemente morrendo. O tempo não pode ser mais fator de lamentação para quem já levou tantos tombos.

Esbarrei com essa poesia do Drummond que achei muito linda:

Igual-Desigual

Eu desconfiava:
todas as histórias em quadrinho são iguais.
Todos os filmes norte-americanos são iguais.
Todos os filmes de todos os países são iguais.
Todos os best-sellers são iguais.
Todos os campeonatos nacionais e internacionais de futebol são
iguais.
Todos os partidos políticos
são iguais.
Todas as mulheres que andam na moda
são iguais.
Todas as experiências de sexo
são iguais.
Todos os sonetos, gazéis, virelais, sextinas e rondós são iguais
e todos, todos
os poemas em verso livre são enfadonhamente iguais.

Todas as guerras do mundo são iguais.
Todas as fomes são iguais.
Todos os amores, iguais iguais iguais.
Iguais todos os rompimentos.
A morte é igualíssima.
Todas as criações da natureza são iguais.
Todas as ações, cruéis, piedosas ou indiferentes, são iguais.
Contudo, o homem não é igual a nenhum outro homem, bicho ou coisa.
Não é igual a nada.
Todo ser humano é um estranho
ímpar.

Não vejo filmes, partidos políticos e amores como iguais. Mas de fato todo ser humano é um estranho sem par no mundo, é ímpar. Somente o fato de sermos ímpares é que vai tornar tudo que é essencialmente igual, diferente.

Ser ímpar, isso aterroriza o ser humano. Nunca vai haver alguém que capte plenamente o que somos e o que sentimos, nunca seremos entendidos ou desvendados. Essencialmente seremos, portanto, sempre sozinhos.

Contudo, vai haver quem nos ame e encare o desafio de nos descobrir. Vai haver quem nos aceite, sejam estes amigos, famílias ou amores. E cabe a nós um desafio grande de aceitar que somos, e sempre seremos, sozinhos.

E aprender a viver bem com isso.

domingo, 29 de março de 2009

Na noite terrível

Na noite terrível, substância natural de todas as noites,
Na noite de insônia, substância natural de todas as minhas noites,
Relembro, velando em modorra incômoda,
Relembro o que fiz e o que podia ter feito na vida.
Relembro, e uma angústia
Espalha-se por mim todo como um frio do corpo ou um medo.
O irreparável do meu passado - esse é que é o cadáver!
Todos os outros cadáveres pode ser que sejam ilusão.
Todos os mortos pode ser que sejam vivos noutra parte.
Todos os meus próprios momentos passsados pode ser que existam algures,
Na ilusão do espaço e do tempo,
Na falsidade do decorrer.

Mas o que eu não fui, o que eu não fiz, o que nem sequer sonhei;
O que só agora vejo que deveria ter feito,
O que só agora claramente vejo que deveria ter sido -
Isso é que é morto para além de todos os Deuses,
Isso - e foi afinal o melhor de mim - é que nem os Deuses fazem viver...

Se em certa altura
Tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita;
Se em certo momento
Tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim;
Se em certa conversa
Tivesse dito as frases que só agora, no meio-sono, elaboro -
Se tudo isso tivesse sido assim,
Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro
Seria insensivelmente levado a ser outro também.

Mas não virei para o lado irreparavelmente perdido,
Não virei nem pensei em virar, e só agora o percebo;
Mas não disse não ou não disse sim, e só agora vejo o que não disse;
Mas as frases que faltou dizer nesse momento surgem-me todas,
Claras, inevitáveis, naturais,
A conversa fechada concludentemente,
A matéria toda resolvida...
Mas só agora o que nunca foi, nem será para trás, me dói.

O que falhei deveras não tem 'sperança nenhuma
Em sistema metafísico nenhum.
Pode ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei,
Mas poderei levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar?
Esses sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.
Enterro-o no meu coração para sempre, para todo o tempo, para todos os universos,
Nesta noite em que não durmo, e o sossego me cerca
Como uma verdade de que não partilho,
E lá fora o luar, com a esperança que não tenho, é invisível p'ra mim.

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa

quarta-feira, 18 de março de 2009

Fé.


Quando as crianças se juntavam à minha volta em roda e me pressionavam até eu chorar, eu Te desejava.
Quando eu queria ter forças para nascer, eu Te desejava.
Quando eu me obrigava a ser forte para enfrentar o mundo, eu Te desejava.
Quando diante de mim faltavam com a verdade, eu Te desejava.
Quando diante de mim faltavam com a coragem, eu Te desejava.
Quando eu era humilhada publicamente Tu vinhas me vingar
E na medida em que as minhas lágrimas escorriam Tu engolias em seco e sentias meus nós na garganta como se fossem Teus.
Te desejava ainda nas noites em que amarrava com cadarços meus piercings nos mamilos
E nas noites em que me masturbava enquanto dormiam do meu lado os namorados.

E como quiseste eu vim pequena, cabelos escuros, pele clara, nariz afilado, mãos e pés pequenos, olhos grandes, quadris largos e seios de uma menina de doze anos.
E pus aos Teus pés, de quatro, os gemidos mais sinceros.
Adorei com o coração o amor e as dores que me deste
E para juntar os meus cacos fui até o inferno.

Eu nunca Te desenhei nem nunca dei forma ao Teu corpo.
Eu nunca Te imaginei chegando num cavalo branco ou me carregando até o altar.
Eu só queria um homem capaz de me dizer a verdade
Mesmo que a verdade fosse me cuspir na cara.

Tu vieste a pé, com uma camisa do Sex Pistols. Troxeste o coração negro como o meu
E inadvertidamente aquele riso de menino que eu desejava a cada esquina.

Quando eu tentava preencher o Teu buraco na alma com amor, eu Te desejava.
Quando eu permanecia impassível do Teu lado nas maiores loucuras, eu Te desejava.
Quando eu chorava no Teu leito de morte, eu Te desejava.
E quando por dentro eu clamava aos céus para Te trazer de volta, eu Te desejava.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Sob um céu azul

É impressionante como um mesmo trajeto, para pessoas como nós, pode ter coloridos nunca antes vistos. Cores fortes e inebriantes: se é feliz, é muito feliz; se triste, avassaladoramente triste. De forma que se pode ver beleza até na dor, rir de si mesmo no tédio, chorar quando feliz, odiar e querer arrancar a única flor que brota do asfalto: uns sentimentos super esquisitos.

Alguns diriam que isso é saber amar a vida. Que se você sente que os momentos se repetem indefinidamente e alternadamente, e ainda assim é capaz de ver beleza e brilho nisso tudo, é porque se valoriza a vida como um presente divino.

Presente de grego, eu diria. Mas isso só porque sou mau humorada, ambígua, contraditória e intensa no meu sentir.

Para uma acéfala desmemoriada como eu, ou melhor, para alguém que sofre de uma memória demasiado seletiva, é fácil sentir os momentos como novos e únicos. E é fácil carregar outros tantos como uma maldição.

A gente anda, corre, vive, muda e depois não sabe nem por que(m) mudou.
A gente pára, pensa, cede e vira do avesso: depois não sabe nem mais o que é.

Quando convivemos com loucos, ficamos um pouco loucos também.
Mas só um pouquinho.

domingo, 15 de fevereiro de 2009


Enquanto eu me devo muitas coisas sérias que não estou conseguindo botar para fora, vou postar um dos negócios com que curiosamente esbarrei hoje. Foram uns papéis de cinco anos atrás, de quando eu nem sonhava em viver uma relação D/s, daí eu fiquei pasma! Fiquei surpresa com o conteúdo, mas é bobo e desesperado como eu sempre fui, para os poucos que mereceram essa entrega louca e visceral. Bobo, eu avisei.

"Eu pulo
ando em duas patas
levo a coleira na boca,
para você me levar para passear.
Chega.
Eu vou pular a janela e,
se eu não cair, ver o sol se pôr, sozinha.
Se eu cair
vai ser só mais um cachorro
que tentou ser gato.
O céu vai estar limpo e estrelado
depois de eu ter chorado todas as nuvens."

Subitamente me vem na cabeça a idéia de Eterno Retorno.

"Que os dedos que me toquem
queiram percorrer toda a extensão
da minha dor, da minha essência.
Que eu seja tão desprezível
que se alguém conseguir me amar
nunca mais desapareça."

Amém.



quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009



Asas e azares


(porque essa poesia do Leminski é linda, e se eu tivesse talento a teria escrito nesse momento)


Voar com asa ferida?
Abram alas quando eu falo.
Que mais foi que fiz na vida?
Fiz, pequeno, quando o tempo
estava todo do meu lado
e o que se chama passado,
passatempo, pesadelo,
só me existia nos livros.
Fiz, depois, dono de mim,
quando tive que escolher
entre um abismo, o começo,
e essa história sem fim.
Asa ferida, asa
ferida,
meu espaço, meu herói.
A asa arde. Voar, isso não dói.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Há que se fazer justiça

Em 04 de fevereiro, de madrugada.

O que parece fraco pode ser forte.
O que parece forte pode ser fraco.
Quem estiver de sapato não vai sobrar.

Não. Eu não fui o homem da relação.
Só porque se é arrogante, incisiva e sem o mínimo de respeito e vergonha na cara, isso não te torna o homem da relação.

Não. Não procede nem é certo dizer que não fui protegida.
Eu fui protegida das minhas lágrimas.
Eu fui protegida das minhas próprias repulsas mais profundas contra mim mesma.
Eu não protegi.

Eu tive alguém do lado quando eu tinha vergonha de quem eu era.
Eu tive alguém do lado quando nem conseguia levantar da cama de tanta dor.

Para além da sacanagem e de toda vivacidade; na saúde ou na doença; na riqueza ou na pobreza; na felicidade ou na dor, dedicação incondicional.

Eu te amei muito, e sinto pelo que aconteceu.
Justiça seja feita.


sábado, 24 de janeiro de 2009

Vou-me embora para Pasárgada...



Mas levo comigo minha memória mais bonita: um menino lindo sentado em frente ao ventilador; sorrindo; suado.


Deixo aqui, nas mãos de um Homem, aquilo que presta, pulsa e dói.


Me acalmo, me desespero

(Cazuza)

O amor deflagra guerras
No coração de quem ama
Um bandido sórdido
Uma menina linda

O amor lança seu ferrão
No desamparo dos amantes
É um inseto louco em volta da luz
Um lobo solitário uivando na escuridão

Do amor pouco sei
E quase tudo espero
Amando eu me acalmo e me desespero

O amor faz da minha voz
Um gemido surdo
De mim um escravo lanhado
Um tigre encurralado

O amor sombreia as trevas
Clareia até cegar
É um lar que não abriga
O crime perfeito de dois assassinos

"O amor é o nosso estado natural quando não optamos pela dor, pelo medo ou pela culpa."
( Willis Harman e Howard Rheingold )

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Homenagem a um amor ao alcance dos dedos.




Analgésico. Meu amor. Meu anjo. Minha força fictícia.
Eu te ofereço o meu amor incondicional porque já te conheço há mais de dois minutos: tens sido companheiro fiel nos últimos anos e conheço e aceito teus reveses.

Que os homens me ouçam e corram para os laboratórios de pesquisa.

Eu tenho um corpo que não me obedece. Que tem compulsão por cair. Eu ordeno: anda! Ele desfalece. Ele se arrasta e é tão fraco que não reage. Ele adoece sem nem ao menos produzir febre, se entrega, e a cada ano que passa envelhece com os olhos cheios d'água, esperando esbarrar num outro corpo nos descaminhos do acaso.

Analgésicos: por que não fizeram um para a alma?
O que fazem os cientistas que não disputam esse nicho com as igrejas?
Por que se atrasam em descobrir a melhor invenção do século?

Eu tenho uma alma que não me obedece. Que tem compulsão por cair. Eu ordeno: anda! Ela desfalece. Ela se debate e arde em febre, e a cada ano envelhece com os olhos cheios d'água, esperando esbarrar numa outra alma nos despropósitos do acaso.

Se ao menos houvesse um analgésico para a alma, ela faria igual meu corpo: seguiria se arrastando debilitada, mas determinada a fingir enquanto cumpre suas tarefas diárias. Com sua força renovada, enquanto definha por dentro, a cada seis em seis horas. Que alma linda seria quando ao invés de trair a mim, traísse o resto do mundo!

E talvez, algum dia, ela se tornasse tão fraca que seria incapaz de produzir febre.



sábado, 17 de janeiro de 2009

...


Do pesadelo de acordar

Eu também tenho pesadelos. Ao contrário de Tereza, eu não sonho que espeto agulhas sob as unhas para aliviar uma dor aguda emocional. Mas minha solidão é tamanha ao acordar, que no momento em que tento abrir os olhos ainda colados, eu desejo que tivesse sonhado e sentido agulhas espetadas sob minhas unhas. Talvez doesse menos que essa ausência eterna, que esse buraco na alma.

Quando eu li "A Insustentável Leveza do Ser" eu odiei Tereza. Porque Tomas era uma personagem fascinante e Tereza, com seu ciúme doentio e total incapacidade de perceber a grandeza do amor sentido por ela, o transformou num covarde consumido pela culpa. Foi a culpa, ou compaixão como se argumenta, que o levou a casar e dar a ela um cachorro. Que o levou a voltar à sua cidade ocupada onde deixou de ser médico para ser limpador de janelas. E que, finalmente, o conduziu a um final medíocre, morrendo numa estrada do interior dirigindo um caminhão.

Sobre compaixão há esse trecho que hoje acho bonito, mas que me provocou fúria na época da leitura. Dêem o devido desconto para quem estava operada, havia acabado de perder um grande amor e, ainda por cima, sido humilhada por isso. Eu obviamente fazia analogias esdrúxulas e superficiais do livro com a minha vida, sem ao certo compreender o significado de todos os elementos.

"Nas línguas derivadas do latim a palavra compaixão significa que não se pode olhar o sofrimento do próximo com o coração frio; em outras palavras: sente-se simpatia por quem sofre. Uma outra palavra que tem mais ou menos o mesmo sentido, piedade (em inglês pity, em italiano pietà etc.) sugere até uma espécie de indulgência para com o ser que sofre. Ter piedade de uma mulher é se sentir mais favorecido do que ela, é se inclinar, abaixar-se até ela.

É por isso que a palavra compaixão em geral inspira desconfiança; designa um sentimento considerado de segunda ordem que não tem muito a ver com o amor. Amar alguém por compaixão não é amar de verdade.

Nas línguas que formam a palavra compaixão não com a raiz passio, "sofrimento", mas com substantivo "sentimento", a palavra é empregada mais ou menos no mesmo sentido, mas dificilmente se pode dizer que designa um sentimento mau ou medíocre. A força secreta de sua etimologia banha a palavra numa outra luz e lhe dá um sentido mais amplo: ter compaixão (co-sentimento) é poder viver com alguém sua infelicidade, mas é também sentir com esse alguém qualquer outra emoção: alegria, angústia, felicidade, dor. Essa compaixão (no sentido de soucit, wspolczucie, Mitgefühl, medkänsla) designa, portanto, a mais alta capacidade de imaginação afetiva, a arte da telepatia das emoções. Na hierarquia dos sentimentos, é o sentimento supremo.

Quando Tereza sonhava que enfiava agulhas sob as unhas, ela se traía, revelando assim a Tomas que mexia em suas gavetas às escondidas. Se alguma outra mulher tivesse feito isso com ele, nunca mais ele teria lhe dirigido a palavra. Como Tereza sabia disso, dizia: "Mande-me embora!". Ora, ele não somente não a mandou embora, como lhe tomou a mão e beijou a ponta de seus dedos, pois, naquele momento, ele próprio sentia a dor que ela experimentava sob as unhas, como se os nervos de Tereza estivessem diretamente ligados ao cérebro dele.

Aquele que não possui o dom diabólico da compaixão (co-sentimento) só pode condenar friamente o comportamento de Tereza, pois a vida particular do outro é sagrada e não se abrem as gavetas onde ele guarda correspondência pessoal. Mas como a compaixão se tornara o destino (ou a maldição) de Tomas, parecia-lhe que era ele mesmo que tinha se ajoelhado em frente à gaveta de sua escrivaninha e que não conseguia tirar os olhos das frases escritas pela mão de Sabina. Compreendia Tereza, e não somente era incapaz de lhe querer mal, como a amava ainda mais."


Hoje, pensando melhor, eu odiei esta personagem por cada milímetro em que eu poderia ser igual a ela. Por cada mesquinharia que eu seria capaz de desejar reproduzir, embora incapaz de fazê-lo.
E é assim que começo a tecer considerações antigas sobre uma relação D/s.



Submissão e dependência

"De um lado, a eterna estrela,
e do outro a vaga incerta,

meu pé dançando pela
extremidade da espuma,
e meu cabelo por uma
planície de luz deserta.

Sempre assim:
de um lado, estandartes do vento...
- do outro, sepulcros fechados.
E eu me partindo, dentro de mim,
para estar no mesmo momento
de ambos os lados."
(Trecho da poesia "Canção quase inquieta", de Cecília Meireles)




No passado eu me vi escrevendo esse texto do alto de uma autoridade moral que eu não tenho, infelizmente. A tese que eu buscava sustentar era a de que, por mais que houvesse entrega, por mais que houvesse amor, a submissa não deveria tornar-se dependente do Dono.

Essa preocupação com dependência foi algo que me bateu logo no início, enquanto eu buscava entender em que esferas da vida a submissa abria mão de sua autonomia. Conforme eu observava diferentes experiências de relação, umas com maior ingerência do Dono, outras com menos, essa preocupação permanecia. O que seria da sub quando a relação acabasse? Como ela faria para se reerguer? Meu pressuposto é de que tudo sempre acaba, na tentativa de tornar os acontecimentos um pouquinho menos doloridos. E numa relação D/s em que a outorga de poder seja total, uma TGE por exemplo? O que é a submissa quando Dono se vai? Um grande nada? Espero que não.

Não tenho opinião concreta sobre o assunto, mas torço para que ser submissa não seja sinônimo de ser extremamente dependente. São linhas muito tênues que separam entrega e total inaptidão para viver sozinha.

Sem estabelecer nenhum padrão sobre como devem funcionar os relacionamentos D/s, até porque isso não faz sentido, minha meta era partir da idéia de Roberto Freire, em "Utopia e Paixão", de que as relações devem ser suplementares e não complementares. Que cada um deve se ver como um todo que tem coisas a acrescentar e a ensinar para o outro através da vivência.

Tudo se complica quando alguém se enxerga como parte ou metade, como no mito sobre a origem do amor em que Zeus desfere fogo dos céus, dividindo o ser humano de duas cabeças, quatro pernas e quatro braços, condenando-o desde então a passar a vida inteira procurando sua outra metade.



Quando nos sentimos incompletos e parte de alguém, sentimos que algo morre com a gente quando a relação acaba. Ao passo que, em tese, se estivéssemos completos, apesar de toda a dor, estaríamos prontos para seguir em frente.

"É dos mais neuróticos e parasitários o amor que leva uma pessoa a achar a outra um pedaço de si mesma. O romantismo também foi e é vítima do autoritarismo. Por isso tornou-se doentio. O saudável, nas relações amorosas seria, primeiro, que a pessoa já tivesse conseguido crescer até o tamanho total de si própria. Depois, aprendesse a viver por si mesma e de si mesma. Só então acasalasse, com alguém que tivesse tido igual desenvolvimento e soubesse viver de si mesma também. Assim, inteiros e juntos, começariam a viver sensações inéditas, extraordinárias, impossíveis de se viver sozinho e que não existem em nós nem sequer em semente. É o amor suplementar de que falamos (...)

Quando, por uma razão qualquer, a relação amorosa se desfaz, o que se desfaz de fato é só a relação amorosa e não as vidas e a integridade de cada um. E o que se tem observado é que por mais denso que seja o amor, quando ele se desfaz nas relações sadias (suplementares) surgem logo novos encontros, novos namoros e seduções, o amor pode se refazer. É outro, original, porém com intensidade e qualidade semelhantes ao anterior."

Já repararam que toda vez que vou abordar submissão acabo falando de amor? Talvez seja uma doença minha fazer sempre essa associação. Loucura ou lucidez, dádiva ou maldição, prossigamos.

Se a submissa de fato se entrega, não importa se por amor, ou se o amor advém justamente da entrega; partindo do pressuposto de que há amor, a dependência será elemento, necessariamente, da relação?

A nossa tendência é exaltar sentimentos desesperados e, muitas vezes, pesados. Como se só existisse amor com peso. Como se não pudesse existir amor na leveza. Essa é uma pergunta que não sei responder, realmente. Mas acredito que se impõe como desafio aos nossos corações pesados, repletos de grandezas mas também de sentimentos humanos como carência, ciúmes, insegurança, vaidade e tantos outros, amar com leveza, apesar e a despeito disso tudo. É como um elefante que deseja ser beija-flor, e voar... Superficial, alguns acusariam, ou superação de nós mesmos e de tudo o que necessitamos? Mais um pouco de Milan Kundera:

"Todos acreditamos que é impensável que o amor de nossa vida possa ser uma coisa leve, uma coisa que não pese nada; achamos que nosso amor é o que devia ser; que sem ele nossa vida não seria nossa vida."

"Mas será mesmo atroz o peso e bela a leveza?

O mais pesado dos fardos nos esmaga, verga-nos, comprime-nos contra o chão. Na poesia amorosa de todos os séculos, porém, a mulher deseja receber o fardo do corpo masculino. O mais pesado dos fardos é, portanto, ao mesmo tempo a imagem da realização vital mais intensa. Quanto mais pesado é o fardo, mais próxima da terra está a nossa vida, e mais real e verdadeira ela é.

Em compensação, a ausência total de fardo leva o ser humano a se tornar mais leve do que o ar, leva-o a voar, a se distanciar da terra, do ser terrestre, a se tornar semi-real, e leva seus movimentos a ser tão livres como insignificantes.

O que escolher então? O peso ou a leveza?

Foi a pergunta que Parmênides fez a si mesmo no século VI antes de Cristo. Segundo ele, o universo está dividido em pares de contrários: a luz/ a escuridão; o grosso/ o fino; o quente/ o frio; o ser/ o não-ser. Ele considerava que um dos pólos da contradição é positivo (o claro, o quente, o fino, o ser), o outro, negativo. Essa divisão em pólos positivo e negativo pode nos parecer de uma facilidade pueril. Exceto em um dos casos: o que é positivo, o peso ou a leveza?

Parmênides respondia: o leve é positivo, o pesado é negativo. Teria ou não teria razão? A questão é essa. Só uma coisa é certa. A contradição pesado/ leve é a mais misteriosa e a mais ambígua de todas as contradições."

"Ao contrário de Parmênides, Beethoven parecia considerar o peso como algo positivo. "Der scher gefabte Entschlub", a decisão gravemente pesada está associada à voz do Destino ("Es muß sein!"); o peso, a necessidade e o valor são três noções intrinsecamente ligadas: só é grave aquilo que é necessário, só tem valor aquilo que pesa.

Essa convicção nasce da música de Beethoven e embora seja possível (se não provável) que ela seja mais da responsabilidade dos exegetas de Beethoven que do próprio compositor, todos nós a compartilhamos mais ou menos hoje em dia: para nós, o que faz a grandeza do homem é ele carregar seu destino como Atlas carregava nos ombros a abóboda celeste. O herói de Beethoven é um halterofilista que levanta pesos metafísicos. (...)

"Es muß sein! Tem que ser assim", Tomas repetia para si mesmo, mas logo começou a ter dúvidas: teria mesmo que ser assim?

Sim, teria sido insuportável ficar em Zurique e imaginar Tereza sozinha em Praga.

Mas quanto tempo ficaria atormentado pela compaixão? Toda vida? Um ano inteiro? Um mês? Ou só uma semana?

Como podia saber? Como podia verificar?

Em trabalhos práticos de física, qualquer aluno pode fazer experimentos para verificar a exatidão de uma hipótese científica. Mas o homem, por ter apenas uma vida, não tem nenhuma possibilidade de verificar a hipótese por meio de experimentos, por isso não saberá nunca se errou ou acertou ao obedecer a seu sentimento."

Termino então esse texto truncado e confuso sem respostas. Tenho dentro de mim um sentimento denso, grandioso e pesado; sou dependente e sofro com o fim; mas tento, a cada dia, fazer disso algo leve, é essa minha luta: encantar e fazer sorrir mesmo à distância para assim, ser feliz também.


quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Para hoje...




apenas um pouco de carência.

(senão não seria eu, oras)

sábado, 10 de janeiro de 2009

Piromaníaco

Esse é um texto que um amigo escreveu para mim, há muitos anos atrás.



fósforos. eu gosto de acender fósforos para ver o palito queimar inteiro. eu acendo e faço ele queimar devagar, a chama vai andando, se afastando da cabeça, chegando perto do meu dedo. quando ela está quase me queimando eu pego na outra ponta, já em carvão, e vejo o fósforo queimar seu último pedaço de madeira. aquele pedaço de carvão retorcido na minha mão me dá uma satisfação sem tamanho por mais ou menos dois segundos, daí eu jogo ele fora e acendo outro.

as vezes eu não consigo queimar eles inteiros, as vezes eu queimo o dedo e acabo largando o fósforo, ou ele quebra e caí. é muito comum só a cabeça se soltar, quando isso acontece fica uma brasa vermelha onde ela estava, que se apaga e deixa uma cinza leve no lugar.

quando eu não consigo consumir um fósforo até o final eu acendo outro, queimo o que faltava do anterior e tento terminar o recém acendido. desde que eu comecei a contar já queimei 407 caixas de 40 fósforos desse jeito. todos os meus dedos tem cicatrizes grandes, principalmente os polegares, neles eu já não tenho impressão digital.

no início eu só fazia com palitos longos, mas eles foram perdendo a graça, eu queria a chama mais perto, então passei para os pequenos. eu não gosto de me queimar, dói e machuca, as vezes de maneira séria. vocês não imaginam como é difícil fazer coisas simples com queimaduras de terceiro grau na mão. mas eu não consigo parar de acender os fósforos.

o fogo me fascina. as cores, a falta de fronteiras, a falta de matéria. o jeito como a chama afeta o ar em volta, que ganha uma aura invisível, uma aura transparente que transfora o que passa por ela. a fumaça que sempre sobe em fio, um fio que se abre no ar e desaparece. não existe nada mais bonito que o movimento do fogo, consumindo aos poucos, dançando com o vento, brincando com a minha respiração.

um dia eu quis beijar o fogo, me queimei. eu sabia que ia me queimar, não sou estúpido, foi a chama que me pediu um beijo, e eu, apaixonado, obedeci. tive que enfaixar a cara, foi difícil comer e falar por um tempo, decidi que não ia mais fazer isso e voltei a só acender meus fósforos. mas pouco depois, quando eu estava vendo o penúltimo fósforo de uma caixa terminar de queimar ele pulou da minha mão.

esse fósforo que pulou caiu na minha camisa que começou a queimar. eu pensei em apagar, podia ter apagado, mas não consegui. o fogo queria me abraçar, eu percebi isso e eu também queria abraçar ele, deixei queimar. eu nunca vi nada tão bonito quanto a minha camisa em chamas, o fogo subindo e se espalhando pelo meu corpo. mas em seguida veio a dor. ela cresceu rápido e me deixou cego, de repente eu só conseguia pensar nela. no último segundo de lucidez eu quis morrer, em nenhum momento eu quis apagar o fogo.

depois disso eu desmaiei, acordei no hospital. lembro de muita gente em volta, lembro da fisioterapia, lembro muito da internação. depois de receber alta no hospital me colocaram em uma clínica psiquiátrica, não tinham fósforos lá. eu me comportei, falei tudo o que todo mundo queria ouvir e de vez em quando eu via meu amor, quando alguém acendia um cigarro, ou quando eu visitava a cozinha. mas não olhava muito, para não perceberem que eu ainda estava apaixonado.

recebi alta ontem, já estou em casa e voltei para meus fósforos. eu sei que não posso mais tocar no fogo, ele me machuca demais. então eu só acendo os fósforos para olhar o meu amor. acendo um por um, queimando inteiros, sem deixar nenhum cair, sem encostar na chama, sem queimar os dedos. um por um, dentro de uma banheira cheia de gasolina.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Invocação ao amor


Pedir-te a sensação
a água
o travo

aquele odor antigo
de uma parede
branca

Pedir-te da vertigem
a certeza
que tens nos olhos quando
me desejas

Pedir-te sobre a mão
a boca inchada
um rasto de saliva
na garganta

pedir-te que me dispas
e me deites
de borco e os meus seios
na tua cara

Pedir-te que me olhes e me aceites
me percorras
me invadas
me pressintas

Pedir-te que me peças
que te queira
no separar das horas
sobre a língua

Meu ciúme
meu perfil
minha fome

meu sossego
minha paz
minha aventura

Meu sabor
minha avidez
saciedade

minha noite
minha angústia
meu costume

Maria Teresa Horta