sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Mensagem à poesia

Vinícius de Moraes

Não posso
Não é possível
Digam-lhe que é totalmente impossível
Agora não pode ser
É impossível
Não posso.

Digam-lhe que estou tristíssimo, mas não posso ir esta noite ao
seu encontro.
Contem-lhe que há milhões de corpos a enterrar
Muitas cidades a reerguer, muita pobreza pelo mundo
Contem-lhe que há uma criança chorando em alguma parte
do mundo
E as mulheres estão ficando loucas, e há legiões delas carpindo
A saudade de seus homens: contem-lhe que há um vácuo
Nos olhos dos párias, e sua magreza é extrema: contem-lhe
Que a vergonha, a desonra, o suicídio, rondam os lares, e é
preciso reconquistar a vida
Façam-lhe ver que é preciso eu estar alerta, voltado para todos os
caminhos
Pronto a socorrer, a amar, a mentir, a morrer se for preciso
Ponderem-lhe com cuidado - não a magoem... que se não vou
Não é porque não queira: ela sabe; é porque há um herói num
cárcere
Há um lavrador que foi agredido, há uma poça de sangue numa
praça.
Contem-lhe, bem em segredo, que eu devo estar prestes, que meus
Ombros não se devem curvar, que meus olhos não se devem
Deixar intimidar, que eu levo nas costas a desgraça dos homens
E não é o momento de parar agora; digam-lhe, no entanto
Que sofro muito, mas não posso mostrar meu sofrimento aos
Homens perplexos; digam-lhe que me foi dada
A terrível participação, e que possivelmente
Deverei enganar, fingir, falar com palavras alheias
Porque sei que há, longínqua, a claridade de uma aurora.
Se ela não compreender, oh, procurem convencê-la
Desse invencível dever que é o meu; mas digam-lhe
Que, no fundo, tudo o que estou dando é dela, e que me
Dói ter de despojá-la assim, neste poema; que por outro lado
Não devo usá-la em seu mistério: a hora é de esclarecimento
Nem debruçar-me sobre mim quando a meu lado
Há fome e mentira; e um pranto de criança sozinha numa
estrada
Junto a um cadáver de mãe; digam-lhe que há
Um náufrago no meio do oceano, um tirano no poder, um homem
Arrependido; digam-lhe que há uma casa vazia
Com um relógio batendo horas; digam-lhe que há um grande
Aumento de abismos na terra, há súplicas, há vociferações
Há fantasmas que me visitam de noite
E que me cumpre receber; contem a ela da minha certeza
No amanhã
Que sinto um sorriso no rosto invisível da noite
Vivo em tensão ante a expectativa do milagre; por isso
Peçam-lhe que tenha paciência, que não me chame agora
Com a sua voz de sombra; que não me faça sentir covarde
De ter de abandoná-la neste instante, em sua incomensurável
Solidão: peçam-lhe, oh peçam-lhe que se cale
Por um momento, que não me chame
Porque não posso ir
Não posso ir
Não posso.

Mas não a traí. Em meu coração
Vive a sua imagem pertencida, e nada direi que possa
Envergonhá-la. A minha ausência
É também um sortilégio
Do seu amor por mim. Vivo do desejo de revê-la
Num mundo em paz: Minha paixão de homem
Resta comigo; minha solidão resta comigo; minha
Loucura resta comigo. Talvez eu deva
Morrer sem vê-la mais, sem sentir mais
O gosto de suas lágrimas, olhá-la correr
Livre e nua nas praias e nos céus
E nas ruas da minha insônia. Digam-lhe que é esse
O meu martírio; que às vezes
Pesa-me sobre a cabeça o tampo da eternidade e as poderosas
Forças da tragédia abatem-se sobre mim, e me impelem para a treva
Mas que eu devo resistir, que é preciso...
Mas que a amo com toda a pureza da minha passada adolescência
Com toda a violência das antigas horas de contemplação extática
Num amor cheio de renúncia. Oh, peçam a ela
Que me perdoe, ao seu triste e inconstante amigo
A que foi dado se perder de amor pelo seu semelhante
A que foi dado se perder de amor por uma pequena casa
Por um jardim de frente, por uma menininha de vermelho
A quem foi dado se perder de amor pelo direito
De todos terem uma pequena casa, um jardim de frente
E uma menininha de vermelho; e se perdendo
Ser-lhe doce perder-se...
Por isso convençam a ela, expliquem-lhe que é terrível
Peçam-lhe de joelhos que não me esqueça, que me ame
Que me espere, porque sou eu, apenas seu; mas que agora
É mais forte do que eu, não posso ir,
Não é possível
Me é totalmente impossível
Não pode ser não
É impossível
Não posso.


Meu duplo


Murilo Mendes


1

A edição que circula de mim pelas ruas
Foi feita sem o meu consentimento.
Existe a meu lado um duplo
Que possui um enorme poder:
Ele imprimiu esta edição da minha vida
Que todo mundo lê e comenta.

Quando eu morrer a água dos mares
Dissolverá a tinta negra do meu corpo,
Destruindo esta edição dos meus pensamentos, sonhos e amores
Feita à minha revelia.

2

O meu duplo sonha de dia e age durante a noite,
O meu duplo arrasta corrente nos pés.
Mancha todas as coisas inocentes que vê e toca.
Ele conspira contra mim,
Desmonta todos os meus atos um por um e sorri.
O meu duplo com uma única palavra
Reverte os objetos do mundo ao negativo do FIAT;
Destrói com um sopro
O trabalho que eu tenho de diminuir o pecado original.
Quando eu morrer o meu duplo morrerá - e eu nascerei.

3

Eu tenho pena de mim e do meu duplo
Que entrava meus passos para o bem,
Que sufoca dentro de mim a imagem divina.
Tenho pena do meu corpo cativo em terra ingrata,
Tenho pena dos meus pais
Que sacrificaram uma existência inteira
Pelo prazer duma noite.
Tenho pena do meu cérebro que comanda
E de minha mão que escreve poemas imperfeitos.
Tenho pena do meu coração que explodiu de tanto ter pena,
Tenho pena do meu sexo que não é independente,
Que é ligado ao meu coração e ao meu cérebro.
Eu tenho pena desta mulher tirânica
Que me ajuda a ampliar o meu duplo.
Tenho pena dos poetas futuros
Que se integrarão na comunidade dos homens
Mas que nos momentos de dúvida e terror
Só terão como resposta o silêncio divino.

4

Ó meu duplo, por que me separas da verdade?
Por que me impeles a descer até a profundeza
Onde cessaram as formas da vida para sempre?
Por que insinuas que o sorriso da criança já traz a corrupção,
Que toda esta ternura é inútil,
Que o homem usará sempre a espada contra seu irmão,
Que minha poesia aumenta o desconsolo em torno de mim?
Ó meu duplo, por que a todo instante me ocultas a Trindade?
Ó meu duplo, por que murmuras sutilmente ao meu ouvido
Que Deus não está em mim porque está fora do mal, do tédio e da dúvida?
Por que atiras um pano negro na estrela da manhã,
Por que opões diante do meu espírito
A temporária Berenice à mulher eterna
Ó meu duplo - meu irmão - Caim - eu admito te matar.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

"Livre para fracassar"

A música linda de "Limite" quando finda a tempestade, que
se repete por todo o filme: Gymnopedie n. 3, de Satie.


segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Limite

(é uma pena tão grande que perdi as minhas fotos desse filme!)






Sinopse: (do site http://filmescopio.50webs.com/filmes/limite.htm)

"Limite" tem um tema, uma situação e três histórias. O tema é a ânsia do homem pelo infinito, seu clamor e sua derrota. A situação é um barco perdido no oceano com três náufragos - um homem e duas mulheres. As três histórias são aquelas que os personagens mutuamente contam. Na situação se esboça o tema que as três histórias desenvolvem. A tragédia cósmica de "Limite" se passa no barco. E para ele convergem as histórias.

O filme começa no barco e no barco marca-se o tom de "Limite". Os náufragos estão abatidos, deixaram de remar e parecem conformados com seu destino. Uma das mulheres dá um biscoito ao homem e conta a sua história.

A mulher foge da prisão com a cumplicidade do carcereiro, despreza-o, foge mas não encontra a paz. Tenta trabalhar - costurar - mas a monotonia a esmaga. Com a notícia de sua fuga, ela parte novamente.

O homem reanima a outra moça caída no fundo do barco. Ela também conta a sua história. Um casamento infeliz e desastrado com um pianista bêbado que toca em cinemas. A mulher sente-se esmagada pela monotonia e pela tirania dos laços de seu casamento. Recorda o homem em toda a sua degradação, desespera e foge.

No barco a primeira mulher tenta desesperadamente remar: mãos e remos são inúteis. Os outros dois olham-na, vencidos e conformados. O homem conta a sua história. Ele, viúvo, tem um caso de amor com uma mulher casada. Há alegria e tristeza. Visitando o túmulo de sua esposa, encontra o marido da amante que lhe diz que ela é leprosa. Desespero, angústia, terror - e fuga.

No barco a água acaba. Um barril visto ao longe pode ser a salvação: o homem pula na água e não aparece à tona. Em desespero, a segunda mulher se atira à primeira, que a agride. Uma fica prostrada, a outra chora. Desencadeia-se uma tempestade - uma longa seqüência catártica que resolve o filme em termos de tema e ritmo. No mar calmo que retorna está apenas a primeira agarrada a um destroço. Lentamente dissolve-se num mar de luzes."

Análise (de Paulo Ricardo de Almeida, da revista Contracampo)

"... Assim, Mário Peixoto estabelece em Limite a dialética entre os olhos e o mar: o dentro e o fora, o eu e o mundo, o aqui e o ali. Os olhos, que observam para além do enquadramento, em direção à câmera de Edgar Brazil, representam a alma que ainda se crê ilimitada. O mar de fogo – reflexos da luz do sol sobre a massa de água, cuja beleza cintilante é também alcançada por Jean-Luc Godard em Je Vous Salue Marie (1984) – aponta para a natureza infinita, para o indiferenciado do universo, amorfo e imenso. Entre os olhos e o mar, encontram-se as algemas, símbolo da limitação que, em conjunto com o plano inicial dos abutres na paisagem desolada (a morte, a decadência), expressam a tragédia daqueles três náufragos à deriva em pleno oceano, por fim engolidos pela tempestade que encerra o filme.

Três personagens, duas mulheres (Olga Breno e Taciana Reis) e um homem (Raul Schnoor) que relembram os acontecimentos que os levaram ao barco perdido na imensidão do mar. Inconformidade, desespero, fuga: Taciana Reis abandona o casamento opressor, o marido bêbado e pianista fracassado; Olga Breno escapa da prisão, com ajuda do carcereiro, para se ver novamente enjaulada pelo trabalho monótono à máquina de costura; Raul Schnoor envolve-se com mulher casada e leprosa e, frente à possibilidade da castração, cai ao solo, aflito, enquanto a câmera descreve lenta panorâmica pelo meridiano celeste sem fim, pelo arco do mundo. De forma que os planos de Limite, em geral longos (impressão reforçada pelas demoradas fusões e pelos acordes cheios da Gymnopédie no.3, de Erik Satie), de enquadramentos precisos e asfixiantemente belos, reiteram as diversas prisões pelas quais os personagens atravessam, multiplicando, pela paisagem de Mangaratiba, signos limítrofes análogos em forma: as bordas dos barcos, as cercas, as grades do presídio e do cemitério, as cruzes, as estradas intermináveis, o mar, o horizonte. Cárceres dentro de cárceres, exasperantes – pois mesmo o infinito se revela outro limite –, dos quais não há escapatória, a despeito das constantes fugas.

A paisagem de Mangaratiba, fundamental em Limite, complexifica as representações do amorfo anteriormente configuradas no mar de fogo. Tragédia, morte, e Brasil: o brejo, o lodo, a praia, a mata, as árvores retorcidas, as ruínas de vegetação pendente, os muros manchados, as fachadas, as janelas, as portas, a estrada, o cemitério, as pessoas no cinema, as pessoas que passam, tudo é Brasil. Filme de poesia, Limite constrói o espaço com extremo realismo, mas a fim de ultrapassá-lo, até mesmo nas citações ao contexto local, absolutamente corretas – o presídio de Ilha Grande, vislumbrado nas grades que aprisionam Olga Breno, ou o leprosário de Mangaratiba, cujo índice está presente na mulher "morphética" com que Raul Schnoor se envolve.

Como o ambiente, as figuram humanas se caracterizam igualmente pela verossimilhança, seja na falta de maquiagem ou nos cabelos dos atores desgrenhados pelo vento (vento que anuncia a chegada da tempestade, da destruição), seja nas interpretações contidas, sóbrias, tensas, pois Mário Peixoto, seguindo Griffith, acredita na significação máxima dos menores gestos, na expressividade que se cristaliza sobretudo nos olhos e na face. Porém, ao contrário dos melodramas griffithianos, não há aprofundamentos psicológicos nos personagens de Limite, já que eles representam a Humanidade – prostrada diante da inutilidade de qualquer ação contra os desmandos da natureza – antes de tipos específicos. E se no cinema de Griffith a montagem concatena as imagens em relações transparentes de causa e efeito para mover a narrativa à frente, no filme de Mário Peixoto ela se torna mais um meio para exprimir o tema central (a angústia do homem esmagado pelo universo), através da associação morfológica, musical e poética entre os planos.

Fala-se, devido à ruptura de Mário Peixoto com o cinema clássico-narrativo (do qual Humberto Mauro poderia ser considerado o principal cineasta brasileiro da época), sobre o alinhamento de Limite com as vanguardas européias. Contudo, enquanto os projetos vanguardistas exaltam a vida moderna, urbana e industrial (como demonstrado em L’Inhumaine, de Marcel L’Herbier, feito em 1924) – no culto à máquina, à energia, à velocidade, ao automatismo – contraposta à destruição do passado, ou seja, dos valores sociais, morais e espirituais arcaicos herdados do século XIX, Limite opera a identificação de elementos próprios à modernidade com formas de cerceamento que afetam os personagens: a máquina de costura, assim como todos os objetos a ela ligados (destacados em planos detalhes), que oprimem Olga Breno, ou o cinema miserável, onde o marido de Taciana Reis toca piano.

No final perdido de Limite, em que um relógio sem mostrador afunda no marantecipando-se a Morangos Silvestres (1957), de Ingmar Bergman, e a Agonia e Glória (1980), de Samuel Füller –, a intenção do cineasta torna-se clara: dizer que o Tempo não passa de mera invenção humana, que o desespero do homem se faz inútil, posto que a natureza, por ser infinita, é também atemporal, pouco se importando com a impotência que suscita em seres tão ínfimos. Dessa forma, Limite, mesmo que utilize técnicas de montagem características, por exemplo, ao cinema soviético – e há semelhanças formais entre o filme de Mário Peixoto e Terra (1930), de Aleksandr Dozhvenko –, significa a anti-vanguarda, uma vez que sugere não o rompimento definitivo entre o homem e a natureza, mas sim a reaproximação entre ambos (como indica o plano em que Olga Breno, agarrada à tábua após a tempestade, desaparece em meio ao mar cintilante), a aceitação humana de seu papel dentro da ordem universal.

Em Limite, portanto, o homem é responsável por suas próprias algemas, visto que, a fim de suportar o fardo de que o mundo existe independente dele, cria o Tempo, que se revela através das memórias dos personagens à deriva na imensidão inescapável, tanto do mar quanto do horizonte."