sábado, 27 de dezembro de 2008

Cartas não enviadas - O BDSM é negro?


Como a cada dia aumenta a pilha de cartas escritas e nunca entregues, e como não quero que esse blog deixe de discutir, mesmo que num nível muito raso BDSM, para virar um muro de lamentações, resolvi postar esse texto. Achei engraçado relê-lo. Escrevi há cerca de sete meses atrás, quando tinha muitas dúvidas sobre minha submissão, dúvidas acerca de como ficaria a questão da autonomia numa relação D/s e sobre o que submeter-se implicaria de fato. Acho que todas elas foram resolvidas. Múltiplas perguntas impacientes na carta: "Você acha que sou submissa? O que identifica e caracteriza uma submissa? E uma masoquista? O que você quer de mim, o que espera de mim? Que mudanças isso implica na nossa relação? Aliás, que relação a gente tem? Que relação a gente pretende ter? E se eu não for submissa? E se eu for submissa só sexualmente? O que é ser submissa para você? Não quero discutir aqui ainda o papel da submissa, mas sua essência? Para quem reivindica BDSM como identidade sexual, como poderia ser possível estabelecer uma relação que não fosse BDSM?" Enfim, uma avalanche de perguntas nunca feitas. No fim das contas, o outro trecho da carta era muito mais elucidativo. Notei que meu medo não era nenhuma dessas coisas, que se resolveram aos poucos e no tempo certo. Meu medo era de alguém que já tinha amado muito e que conserva uma relação de amor e ódio com o próprio Amor. Ás vezes de elevação, louvando este sentimento como o mais iluminado do mundo (e realmente é), e às vezes ingratidão diante da dor. Eu descobri no BDSM identidade e que o papel do Dom ia ao encontro de tudo o que desejei na vida. E temi, pois quem tem o mínimo de sensibilidade e intuição acaba temendo sempre com razão.

"Sobre meus medos, tentando entender a origem de toda essa angústia.

Supondo que seja esse o caminho que vamos trilhar. Digo caminho porque tudo é um processo. Não existe submissa pronta, tenho muito, mas muito mesmo a aprender, e como processo interno acho que será bastante tortuoso e difícil (embora eu vislumbre algo muito bom ao mesmo tempo).

Tem características que você reivindica como de uma relação D/s que mexem demais comigo. Toda vez que você fala sobre me proteger e me cuidar, você talvez não tenha idéia do impacto que isso tem sobre mim.

É claro que pessoas me cuidaram, cada um da forma que pôde, mas eu SINTO que ninguém nunca me protegeu.

Isso me dói demais. Ninguém nunca me protegeu.

Eu teria inúmeras situações para relatar aqui. Desde as crianças fazerem roda em volta de mim no colégio e me pressionarem até eu chorar e ninguém nunca aparecer para me defender. Até questões mais sérias de humilhação publica em relação à minha sexualidade. Aqui cabe contar, se você quiser ouvir, um episódio muito marcante para mim.

Eu aprendi a ser "forte" porque não havia ninguém para me defender. As pessoas me acham forte e corajosa e eu me sinto frágil. Eu digo as coisas de forma incisiva e estou chorando por dentro. Depois do teatro, num canto escuro do meu quarto eu, invisível, choro. Me sinto fraca. Eu continuo a mesma mia de antes, que chorava no recreio. Eu só aprendi a fingir melhor em público. Por isso quando penso no que você faz vejo que é uma questão de vocação mesmo. Para mim seria um pesadelo, eu iria aos poucos morrer por dentro. Embora exista o lado muito político de militar no movimento. Eu gosto e não gosto da disputa. Gosto de "esculachar" esses filhos da puta quando eles sofrem uma derrota pois sei que lutamos por algo que é muito justo. Mas ao mesmo tempo, a disputa me avilta. Saber que o mundo está repleto desse tipo de gente, que são eles que estão no poder e dão as diretrizes me deixa muito revoltada, a ponto que parei de achar que isso tudo seria só coincidência e passei a me importar com a questão "existe ou não um Deus" para ficar na dúvida entre sua inexistência ou seu glorioso reinado como um grandissíssimo filho da puta. Sem ofensas a você.

Voltando e pegando o gancho. Eu disputo contra o que acho injusto e isso não diz respeito só ao âmbito do movimento. Eu disputo no sentido de afirmar o que sou, meu direito de poder viver minha sexualidade, por exemplo. Disputo meu direito de ser diferente, com a família, com os amigos, no trabalho. Embora esteja sendo muito mais omissa do que era. Para você entender: ao mesmo tempo que não vou anular as minhas diferenças para que os outros gostem de mim, tenho uma necessidade imensa de ser aceita. Atualmente vivo essa fase: não me anulo, as pessoas me aceitam porque estou vivendo uma mentira.

Onde você entra nisso? Você já vai entender.

Não é para fazer sentido. Estou falando de medos aqui, e eles muitas vezes são irracionais.

Você me trata bem. Você demonstra que gosta de mim, lembra de mim, essas coisas. Estou apaixonada por você. Alterno entre momentos de extrema felicidade e de uma rejeição antecipada. Me questiono se em breve não vai chegar o tempo em que você não irá me aceitar. Que vai achar um despropósito ser honesto comigo. Que vai se arrepender de ter me dito que iria me cuidar e me proteger.

Peço que você reflita. Você me disse que não irá me faltar. Pense bem se você quer isso mesmo, pois eu não consigo pensar em algo que eu deseje mais que isso no mundo.
É isso?

Conversando sobre BDSM e tentando entender um pouco mais, sem fazer nenhuma menção a esse assunto diretamente, olha o que ouvi de uma submissa. Sem querer fui ao encontro de tudo o que temo. Antes de falar, saiba que não acho que nenhuma experiência é igual a outra e que não estou estendendo isso a você. Ouvi que o BDSM não é cor de rosa, e sim negro. Que é uma montanha russa de emoções, e que essa estória do Dom cuidar da sub e não faltar era mentira. Era a sub que tinha estado lá o tempo todo, sem faltar com o Dom. Era ela quem tinha cuidado dele, no fim das contas."



2 comentários:

Unknown disse...

mia;

O BDSM verdadeiro é negro.

Porque pra uns ele é um amor em espelho perfeito, que se estilhaça diante da nossa própria imperfeição.

Pra mim é assim.

Eu estou aqui pra você, só que de outra forma. Eu tive um reluzente ato moral triste, depois de muito tempo. Um ato moral sem vencidos nem vencedores. Uma resolução de conflito, como dizem os tarólogos.

Nunca te abandonei e nunca te virei as costas. Sua mágoa nesse sentido não me agride, porque eu entendo que na tua dor você tem o direito de me acusar disso, até.

Mas você vai ser mudada pelos dias: Não fugi, não menti, não desertei. Eu fiz o que era necessário, apenas. E dói, claro. Não encontrará eco nenhuma acusação de insensibilidade.

Falhamos todos, hoje vejo que as histórias eram unidas. Cada um tem a sua, mas elas se entremearam de um jeito profundo, quer queiramos ou não.

Eu te aceito porque você me ensinou muitas coisas, mesmo sendo minha aprendiz.

Vejo teu valor, gosto de ti, acho que teu amor foi dado de forma que eu poderia ter feito dele conforme quisesse. Nem você pode me negar meu lampejo de ética.

Na minha alma, foi como acender uma lamparina na escuridão.

Continuo te aceitando conforme você é. Mesmo que não acredite.

Por um momento eu vislumbro que a aprendiz está pronta. Me vem a cabeça a idéia de que não criamos nossos filhos para nós, mas para o mundo.

Tudo o que me ensinaste vai comigo para sempre. Guarda de mim o que te completar e perceba, algum dia, o milagre disso tudo. Tenho certeza de que Deus pretendia nos dizer muitas coisas. E disse.

Só há eternidade no que se modifica, sabe disso. Porque nunca fizemos votos de eternidade?

A minha lança de fogo feriu a ti, a outra criança e a mim mesmo, num golpe só. Isso não muda nenhum dos meus afetos.

Não te renego. Eu só te libertei.

Quando a ferida for cicatriz você vai ser mais forte e linda do que antes, não vê?

Você lidou com um homem que falava a verdade, dentro de suas insanidades todas.

Eu te aceito porque teu amor me aceitava também. Você encontrou alguém que te aceitou, isso não te encheu de esperança? Não é verdade provada que existe amor neste mundo agora?

Sara logo, eu estou aqui. Sempre estive.

Um beijo.

mia. disse...

Senhor lindo e amado mais que tudo,

É verdade que o amor e tudo o que tivemos de lindo me encheram de esperanças. Não porque eu nunca tivesse amado ou me doado com intensidade: sabes da minha história. Mas porque conheci, sim, o amor incondicional, e nele pude entender, amar e me conectar profundamente com o Teu ser.

Temos muitas semelhanças, identidades, facilidades de diálogo, mas também muitas diferenças. Você expandiu meus limites morais e me ajudou em minha caminhada a ter uma visão mais flexível do mundo - embora o Senhor mesmo seja mais rígido que eu e por vezes muito duro consigo mesmo.

Te amar é uma constante superação de mim mesma. Isso, por mais que me seja sofrido, também me faz um bem enorme. Eu acredito mais em mim e nas minhas possibilidades como ser humano. Tenho para mim o Amor como sentimento iluminado e maior que tudo, inclusive honra, história, moral e valores relativos sobre o que é "certo" ou "errado". Já Te disse que para mim a única ética possível ao Amor é amar, intensamente, mas é bom ficar claro que isso inclui parâmetros morais sim embora não pareça: o Amor não manipula e busca sempre o bem e a felicidade do ser amado. E liberta ao invés de aprisionar.

O Amor verdadeiro justifica tudo o que é feito sem a intenção de machucar. Tudo aceita, tudo perdoa. É graça divina.

E embora se pudesse imputar o meu ponto de vista à falta de uma religião com conceitos de honra criados pelos homens, eu arrisco dizer que muito da minha visão do Amor tem a ver com uma lógica cristã sim. Assim como todo o resto que eu faço, mesmo que eu tenha buscado negar isso.

(Tive vontade de ir a uma igreja hoje, preciso te contar melhor. Não sei se isso vai durar, mas sinto vontade de me reconciliar com Deus e preciso aprender a desejar as coisas certas. Em mim, também há uma luta do bem contra o mal. Não gosto de determinados sentimentos meus que as circunstâncias forjaram em mim, não combina comigo.)

Enfim. Aprendi muitas coisas com o Senhor e continuarei aprendendo.

Aprendi a amar Tuas qualidades e defeitos e a ver as imperfeições como algo belo e humano. Por isso, se Você fosse o homem que eu questionei naquela carta, eu Te amaria sim. Espero que eu tenha respondido a Tua pergunta. Te amaria até onde eu conseguisse, embora nunca se possa precisar e prever isso, mas certamente acima dos meus limites. Porque aceitação é isso. E eu Te aceito.

Continuo a me reivindicar como Tua mulher, submissa, puta e consorte. Mas minha saída é, como foi nas outras vezes, Te esperar com os olhos baixos. Não vejo sentido em transformar nossa relação num amontoado de mágoas. Prometo que vou tentar me comportar, embora eu tenha falhas: quero que Você tenha força para prosseguir com Teus projetos, se cuidar, parar de fumar, voltar a estudar e tantas outras coisas boas que podem vir a ser com a Tua libertação. Conheço Teus mecanismos, Você bem o sabe. E não os utilizarei para Te aprisionar em minha dor.

Ela é grande. Como eu disse, e pode parecer bobo mas eu repito, perdi a minha Alma gêmea. Não uma imagem de um amor, não uma fantasia que criei em minha mente e esperei que Você a correspondesse, mas perdi Você, incrível, exatamente como é. E não tenho a intenção de desistir de reconquistá-lo (note que não é uma promessa porque tudo está muito caótico agora), mas muito antes disso Você precisa estar bem, acima de tudo.

Não te quero mal, muito pelo contrário, não entenda assim esse post nem qualquer crítica que eu possa ter em relação às Tuas condutas. Elas existem e são necessárias, para mim porque me ajuda a digerir a minha dor, e para Ti, que me ensinou muito, porque também acho que tem bastante a aprender comigo.

Um beijo da Tua mia.