sábado, 10 de janeiro de 2009

Piromaníaco

Esse é um texto que um amigo escreveu para mim, há muitos anos atrás.



fósforos. eu gosto de acender fósforos para ver o palito queimar inteiro. eu acendo e faço ele queimar devagar, a chama vai andando, se afastando da cabeça, chegando perto do meu dedo. quando ela está quase me queimando eu pego na outra ponta, já em carvão, e vejo o fósforo queimar seu último pedaço de madeira. aquele pedaço de carvão retorcido na minha mão me dá uma satisfação sem tamanho por mais ou menos dois segundos, daí eu jogo ele fora e acendo outro.

as vezes eu não consigo queimar eles inteiros, as vezes eu queimo o dedo e acabo largando o fósforo, ou ele quebra e caí. é muito comum só a cabeça se soltar, quando isso acontece fica uma brasa vermelha onde ela estava, que se apaga e deixa uma cinza leve no lugar.

quando eu não consigo consumir um fósforo até o final eu acendo outro, queimo o que faltava do anterior e tento terminar o recém acendido. desde que eu comecei a contar já queimei 407 caixas de 40 fósforos desse jeito. todos os meus dedos tem cicatrizes grandes, principalmente os polegares, neles eu já não tenho impressão digital.

no início eu só fazia com palitos longos, mas eles foram perdendo a graça, eu queria a chama mais perto, então passei para os pequenos. eu não gosto de me queimar, dói e machuca, as vezes de maneira séria. vocês não imaginam como é difícil fazer coisas simples com queimaduras de terceiro grau na mão. mas eu não consigo parar de acender os fósforos.

o fogo me fascina. as cores, a falta de fronteiras, a falta de matéria. o jeito como a chama afeta o ar em volta, que ganha uma aura invisível, uma aura transparente que transfora o que passa por ela. a fumaça que sempre sobe em fio, um fio que se abre no ar e desaparece. não existe nada mais bonito que o movimento do fogo, consumindo aos poucos, dançando com o vento, brincando com a minha respiração.

um dia eu quis beijar o fogo, me queimei. eu sabia que ia me queimar, não sou estúpido, foi a chama que me pediu um beijo, e eu, apaixonado, obedeci. tive que enfaixar a cara, foi difícil comer e falar por um tempo, decidi que não ia mais fazer isso e voltei a só acender meus fósforos. mas pouco depois, quando eu estava vendo o penúltimo fósforo de uma caixa terminar de queimar ele pulou da minha mão.

esse fósforo que pulou caiu na minha camisa que começou a queimar. eu pensei em apagar, podia ter apagado, mas não consegui. o fogo queria me abraçar, eu percebi isso e eu também queria abraçar ele, deixei queimar. eu nunca vi nada tão bonito quanto a minha camisa em chamas, o fogo subindo e se espalhando pelo meu corpo. mas em seguida veio a dor. ela cresceu rápido e me deixou cego, de repente eu só conseguia pensar nela. no último segundo de lucidez eu quis morrer, em nenhum momento eu quis apagar o fogo.

depois disso eu desmaiei, acordei no hospital. lembro de muita gente em volta, lembro da fisioterapia, lembro muito da internação. depois de receber alta no hospital me colocaram em uma clínica psiquiátrica, não tinham fósforos lá. eu me comportei, falei tudo o que todo mundo queria ouvir e de vez em quando eu via meu amor, quando alguém acendia um cigarro, ou quando eu visitava a cozinha. mas não olhava muito, para não perceberem que eu ainda estava apaixonado.

recebi alta ontem, já estou em casa e voltei para meus fósforos. eu sei que não posso mais tocar no fogo, ele me machuca demais. então eu só acendo os fósforos para olhar o meu amor. acendo um por um, queimando inteiros, sem deixar nenhum cair, sem encostar na chama, sem queimar os dedos. um por um, dentro de uma banheira cheia de gasolina.