sábado, 17 de janeiro de 2009

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Do pesadelo de acordar

Eu também tenho pesadelos. Ao contrário de Tereza, eu não sonho que espeto agulhas sob as unhas para aliviar uma dor aguda emocional. Mas minha solidão é tamanha ao acordar, que no momento em que tento abrir os olhos ainda colados, eu desejo que tivesse sonhado e sentido agulhas espetadas sob minhas unhas. Talvez doesse menos que essa ausência eterna, que esse buraco na alma.

Quando eu li "A Insustentável Leveza do Ser" eu odiei Tereza. Porque Tomas era uma personagem fascinante e Tereza, com seu ciúme doentio e total incapacidade de perceber a grandeza do amor sentido por ela, o transformou num covarde consumido pela culpa. Foi a culpa, ou compaixão como se argumenta, que o levou a casar e dar a ela um cachorro. Que o levou a voltar à sua cidade ocupada onde deixou de ser médico para ser limpador de janelas. E que, finalmente, o conduziu a um final medíocre, morrendo numa estrada do interior dirigindo um caminhão.

Sobre compaixão há esse trecho que hoje acho bonito, mas que me provocou fúria na época da leitura. Dêem o devido desconto para quem estava operada, havia acabado de perder um grande amor e, ainda por cima, sido humilhada por isso. Eu obviamente fazia analogias esdrúxulas e superficiais do livro com a minha vida, sem ao certo compreender o significado de todos os elementos.

"Nas línguas derivadas do latim a palavra compaixão significa que não se pode olhar o sofrimento do próximo com o coração frio; em outras palavras: sente-se simpatia por quem sofre. Uma outra palavra que tem mais ou menos o mesmo sentido, piedade (em inglês pity, em italiano pietà etc.) sugere até uma espécie de indulgência para com o ser que sofre. Ter piedade de uma mulher é se sentir mais favorecido do que ela, é se inclinar, abaixar-se até ela.

É por isso que a palavra compaixão em geral inspira desconfiança; designa um sentimento considerado de segunda ordem que não tem muito a ver com o amor. Amar alguém por compaixão não é amar de verdade.

Nas línguas que formam a palavra compaixão não com a raiz passio, "sofrimento", mas com substantivo "sentimento", a palavra é empregada mais ou menos no mesmo sentido, mas dificilmente se pode dizer que designa um sentimento mau ou medíocre. A força secreta de sua etimologia banha a palavra numa outra luz e lhe dá um sentido mais amplo: ter compaixão (co-sentimento) é poder viver com alguém sua infelicidade, mas é também sentir com esse alguém qualquer outra emoção: alegria, angústia, felicidade, dor. Essa compaixão (no sentido de soucit, wspolczucie, Mitgefühl, medkänsla) designa, portanto, a mais alta capacidade de imaginação afetiva, a arte da telepatia das emoções. Na hierarquia dos sentimentos, é o sentimento supremo.

Quando Tereza sonhava que enfiava agulhas sob as unhas, ela se traía, revelando assim a Tomas que mexia em suas gavetas às escondidas. Se alguma outra mulher tivesse feito isso com ele, nunca mais ele teria lhe dirigido a palavra. Como Tereza sabia disso, dizia: "Mande-me embora!". Ora, ele não somente não a mandou embora, como lhe tomou a mão e beijou a ponta de seus dedos, pois, naquele momento, ele próprio sentia a dor que ela experimentava sob as unhas, como se os nervos de Tereza estivessem diretamente ligados ao cérebro dele.

Aquele que não possui o dom diabólico da compaixão (co-sentimento) só pode condenar friamente o comportamento de Tereza, pois a vida particular do outro é sagrada e não se abrem as gavetas onde ele guarda correspondência pessoal. Mas como a compaixão se tornara o destino (ou a maldição) de Tomas, parecia-lhe que era ele mesmo que tinha se ajoelhado em frente à gaveta de sua escrivaninha e que não conseguia tirar os olhos das frases escritas pela mão de Sabina. Compreendia Tereza, e não somente era incapaz de lhe querer mal, como a amava ainda mais."


Hoje, pensando melhor, eu odiei esta personagem por cada milímetro em que eu poderia ser igual a ela. Por cada mesquinharia que eu seria capaz de desejar reproduzir, embora incapaz de fazê-lo.
E é assim que começo a tecer considerações antigas sobre uma relação D/s.



Submissão e dependência

"De um lado, a eterna estrela,
e do outro a vaga incerta,

meu pé dançando pela
extremidade da espuma,
e meu cabelo por uma
planície de luz deserta.

Sempre assim:
de um lado, estandartes do vento...
- do outro, sepulcros fechados.
E eu me partindo, dentro de mim,
para estar no mesmo momento
de ambos os lados."
(Trecho da poesia "Canção quase inquieta", de Cecília Meireles)




No passado eu me vi escrevendo esse texto do alto de uma autoridade moral que eu não tenho, infelizmente. A tese que eu buscava sustentar era a de que, por mais que houvesse entrega, por mais que houvesse amor, a submissa não deveria tornar-se dependente do Dono.

Essa preocupação com dependência foi algo que me bateu logo no início, enquanto eu buscava entender em que esferas da vida a submissa abria mão de sua autonomia. Conforme eu observava diferentes experiências de relação, umas com maior ingerência do Dono, outras com menos, essa preocupação permanecia. O que seria da sub quando a relação acabasse? Como ela faria para se reerguer? Meu pressuposto é de que tudo sempre acaba, na tentativa de tornar os acontecimentos um pouquinho menos doloridos. E numa relação D/s em que a outorga de poder seja total, uma TGE por exemplo? O que é a submissa quando Dono se vai? Um grande nada? Espero que não.

Não tenho opinião concreta sobre o assunto, mas torço para que ser submissa não seja sinônimo de ser extremamente dependente. São linhas muito tênues que separam entrega e total inaptidão para viver sozinha.

Sem estabelecer nenhum padrão sobre como devem funcionar os relacionamentos D/s, até porque isso não faz sentido, minha meta era partir da idéia de Roberto Freire, em "Utopia e Paixão", de que as relações devem ser suplementares e não complementares. Que cada um deve se ver como um todo que tem coisas a acrescentar e a ensinar para o outro através da vivência.

Tudo se complica quando alguém se enxerga como parte ou metade, como no mito sobre a origem do amor em que Zeus desfere fogo dos céus, dividindo o ser humano de duas cabeças, quatro pernas e quatro braços, condenando-o desde então a passar a vida inteira procurando sua outra metade.



Quando nos sentimos incompletos e parte de alguém, sentimos que algo morre com a gente quando a relação acaba. Ao passo que, em tese, se estivéssemos completos, apesar de toda a dor, estaríamos prontos para seguir em frente.

"É dos mais neuróticos e parasitários o amor que leva uma pessoa a achar a outra um pedaço de si mesma. O romantismo também foi e é vítima do autoritarismo. Por isso tornou-se doentio. O saudável, nas relações amorosas seria, primeiro, que a pessoa já tivesse conseguido crescer até o tamanho total de si própria. Depois, aprendesse a viver por si mesma e de si mesma. Só então acasalasse, com alguém que tivesse tido igual desenvolvimento e soubesse viver de si mesma também. Assim, inteiros e juntos, começariam a viver sensações inéditas, extraordinárias, impossíveis de se viver sozinho e que não existem em nós nem sequer em semente. É o amor suplementar de que falamos (...)

Quando, por uma razão qualquer, a relação amorosa se desfaz, o que se desfaz de fato é só a relação amorosa e não as vidas e a integridade de cada um. E o que se tem observado é que por mais denso que seja o amor, quando ele se desfaz nas relações sadias (suplementares) surgem logo novos encontros, novos namoros e seduções, o amor pode se refazer. É outro, original, porém com intensidade e qualidade semelhantes ao anterior."

Já repararam que toda vez que vou abordar submissão acabo falando de amor? Talvez seja uma doença minha fazer sempre essa associação. Loucura ou lucidez, dádiva ou maldição, prossigamos.

Se a submissa de fato se entrega, não importa se por amor, ou se o amor advém justamente da entrega; partindo do pressuposto de que há amor, a dependência será elemento, necessariamente, da relação?

A nossa tendência é exaltar sentimentos desesperados e, muitas vezes, pesados. Como se só existisse amor com peso. Como se não pudesse existir amor na leveza. Essa é uma pergunta que não sei responder, realmente. Mas acredito que se impõe como desafio aos nossos corações pesados, repletos de grandezas mas também de sentimentos humanos como carência, ciúmes, insegurança, vaidade e tantos outros, amar com leveza, apesar e a despeito disso tudo. É como um elefante que deseja ser beija-flor, e voar... Superficial, alguns acusariam, ou superação de nós mesmos e de tudo o que necessitamos? Mais um pouco de Milan Kundera:

"Todos acreditamos que é impensável que o amor de nossa vida possa ser uma coisa leve, uma coisa que não pese nada; achamos que nosso amor é o que devia ser; que sem ele nossa vida não seria nossa vida."

"Mas será mesmo atroz o peso e bela a leveza?

O mais pesado dos fardos nos esmaga, verga-nos, comprime-nos contra o chão. Na poesia amorosa de todos os séculos, porém, a mulher deseja receber o fardo do corpo masculino. O mais pesado dos fardos é, portanto, ao mesmo tempo a imagem da realização vital mais intensa. Quanto mais pesado é o fardo, mais próxima da terra está a nossa vida, e mais real e verdadeira ela é.

Em compensação, a ausência total de fardo leva o ser humano a se tornar mais leve do que o ar, leva-o a voar, a se distanciar da terra, do ser terrestre, a se tornar semi-real, e leva seus movimentos a ser tão livres como insignificantes.

O que escolher então? O peso ou a leveza?

Foi a pergunta que Parmênides fez a si mesmo no século VI antes de Cristo. Segundo ele, o universo está dividido em pares de contrários: a luz/ a escuridão; o grosso/ o fino; o quente/ o frio; o ser/ o não-ser. Ele considerava que um dos pólos da contradição é positivo (o claro, o quente, o fino, o ser), o outro, negativo. Essa divisão em pólos positivo e negativo pode nos parecer de uma facilidade pueril. Exceto em um dos casos: o que é positivo, o peso ou a leveza?

Parmênides respondia: o leve é positivo, o pesado é negativo. Teria ou não teria razão? A questão é essa. Só uma coisa é certa. A contradição pesado/ leve é a mais misteriosa e a mais ambígua de todas as contradições."

"Ao contrário de Parmênides, Beethoven parecia considerar o peso como algo positivo. "Der scher gefabte Entschlub", a decisão gravemente pesada está associada à voz do Destino ("Es muß sein!"); o peso, a necessidade e o valor são três noções intrinsecamente ligadas: só é grave aquilo que é necessário, só tem valor aquilo que pesa.

Essa convicção nasce da música de Beethoven e embora seja possível (se não provável) que ela seja mais da responsabilidade dos exegetas de Beethoven que do próprio compositor, todos nós a compartilhamos mais ou menos hoje em dia: para nós, o que faz a grandeza do homem é ele carregar seu destino como Atlas carregava nos ombros a abóboda celeste. O herói de Beethoven é um halterofilista que levanta pesos metafísicos. (...)

"Es muß sein! Tem que ser assim", Tomas repetia para si mesmo, mas logo começou a ter dúvidas: teria mesmo que ser assim?

Sim, teria sido insuportável ficar em Zurique e imaginar Tereza sozinha em Praga.

Mas quanto tempo ficaria atormentado pela compaixão? Toda vida? Um ano inteiro? Um mês? Ou só uma semana?

Como podia saber? Como podia verificar?

Em trabalhos práticos de física, qualquer aluno pode fazer experimentos para verificar a exatidão de uma hipótese científica. Mas o homem, por ter apenas uma vida, não tem nenhuma possibilidade de verificar a hipótese por meio de experimentos, por isso não saberá nunca se errou ou acertou ao obedecer a seu sentimento."

Termino então esse texto truncado e confuso sem respostas. Tenho dentro de mim um sentimento denso, grandioso e pesado; sou dependente e sofro com o fim; mas tento, a cada dia, fazer disso algo leve, é essa minha luta: encantar e fazer sorrir mesmo à distância para assim, ser feliz também.


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